30 anos da BALADA DE AMOR AO VENTO

Escrito por Celso Muianga*

Acho que a missão da mulher é assombrar, espantar. Se a mulher não espanta… De resto, não é só a mulher, todos os seres humanos têm que deslumbrar os seus semelhantes para serem um acontecimento. Temos que ser um acontecimento uns para

os outros. Então a pessoa tem que fazer o possível para deslumbrar o seu semelhante, para que a vida seja um motivo de deslumbramento. Se chama a isso sedução, cumpri aquilo que me era forçoso fazer.

Natália Correia, in Entrevista ‘(1983)’

«Tenho saudades do meu Save, das águas azul-esverdeadas do seu rio. Tenho saudades do verde canavial balançando ao vento, dos campos de mil cores em harmonia, das mangueiras, dos cajueiros e palmares sem fim». É com estas palavras que abre o livro BALADA DE AMOR AO VENTO que Paulina Chiziane deu a conhecer ao país e ao mundo naquele fim de tarde de sexta-feira do dia 14 de Setembro de 1990. O evento teve lugar no salão nobre da Associação dos Escritores Moçambicanos. Passam hoje 30 anos. Felicitei à escritora, uma amiga que ganhei para a vida e com quem tenho tido a subida honra de privar nestes anos. Falámos sobre a data e Paulina disse-me que se recordava com alegria do evento, do calor dos amigos e da família. Prometi a mim próprio rabiscar algumas linhas sobre o assunto. Partilhei a informação com mais alguns amigos que redobraram em mim o ânimo para a lavrar qualquer coisa para não cairmos no esquecimento, como é o costume nesta Pátria Amada. «Acontecimento peculiar e de grande significado, não só para a literatura moçambicana, mas também para a mulher moçambicana em geral» – está assim grafado naquela edição da TEMPO de 23 de Setembro de 1990. No recorte de imagem do evento é possível identificar Paulina Chiziane a autografar um exemplar para o confrade Guilherme Afonso. Estiveram presentes na cerimónia personalidades como José Craveirinha, o poeta Kalungano e Sérgio Vieira revela-nos o jornalista Paulo Sérgio da TEMPO.

O lançamento deste livro foi um acto de coragem de uma mulher que não se deixou intimidar pela desconfiança e alguma dose de cinismo protocolar, num contexto em que a mulher não é valorizada como deve ser. Mas a irreverência de Paulina Chiziane fez-se valer ao longo destes 36 anos de vida literária. Recordo-me das nossas longas conversas sobre a fase inicial do percurso de Paulina Chiziane. Ela recorda com profunda gratidão as decisivas intervenções de Albino Magaia e Rui Nogar para afastar os fantasmas dos prepotentes. Paulina teve de lutar e agarrar-se à fé e coragem para vencer todas as barreiras até à publicação do primeiro livro. Paulina Chiziane contou-me sobre o seu encontro com o editor Zeferino Coelho na feira do livro de Frankfurt. Foi lá onde nasceu o laço com Zeferino Coelho, aquele que é considerado o pai dos escritores africanos em Portugal, com largas colecções de títulos de autores africanos de expressão portuguesa e não só. Com a chancela da Editorial Caminho foram publicados os títulos a BALADA DE AMOR AO VENTO, seguido de VENTOS DO APOCALIPSE, O SÉTIMO JURAMENTO,  NIKETCHE, O ALEGRE CANTO DA PERDIZ. Estas publicações feitas pela Caminho em co-edição com a Editorial Ndjira em Moçambique tiveram ressonância noutras latitudes dentro da Europa, América Latina e do Norte. Recentemente NIKETCHE foi publicado nos Estados Unidos da América. Este reconhecimento não é só atribuído à obra de Paulina Chiziane, mas sim a todos moçambicanos. Paulina é por via das suas criações literárias embaixadora de Moçambique e porta-estandarte da afirmação das mulheres moçambicanas no mundo. Paulina percorreu o país de lés-a-lés num contexto de fome e guerra civil. Há um reconhecimento que nos últimos vem sendo feito por organizações da sociedade civil e pelo chefe de Estado moçambicano, mas creio que é preciso fazer mais pelos escritores e pelos livros, como por exemplo haver obrigatoriedade de todas instituições públicas, desde o governo central até ao distrito, adquirirem livros para as suas bibliotecas, a fixação no orçamento do Estado de uma verba especial e prioritária para os Institutos de Formação de Professores poderem comprar livros para apetrechar as suas bibliotecas, sobretudo com obras de autores moçambicanos. Não é segredo que o professor joga um papel importante na indução dos alunos à leitura, ensinando desde cedo as crianças a gostarem de ler. Assim estaremos a dar continuidade a um caminho que Paulina Chiziane abriu para as crianças deste país, o caminho da leitura, da reflexão, do pensamento livre e da escrita para eternizar em papel as vozes dos moçambicanos. E reparando para o desempenho dos últimos anos é evidente que o livro tem sido marginalizado no nosso Sistema Nacional de Educação. 

Paulina Chiziane não é obra do acaso. A sua aparição no meio literário foi iniciado por outra geração de mulheres onde destacam-se Noémia de Sousa, Bertina Lópes, Glória de Sant`Anna, Clotilde Silva e, mais tarde Lina Magaia, Lília Momplé. E por sua vez Paulina Chiziane abriu outras portas para outras mulheres que hoje dão expressão às nossas letras, tais como Sónia Sultuane, Sara Jona, Iracema de Sousa, Márcia dos Santos, Lica Sebastião, Tânia Tomé, Virgília Ferrão, Emmy XyX, Melita Matsinhe, Hirondina Joshua, Deusa de África, Cri Essência, Amilca Ismael, Sandra Tamele, Eliana N`Zualo, Tassiana Tomé, Julieta Massossote e muitas outras que não me ocorrem e perdoem-me a omissão.

Conversei longamente com Paulina no seu quintal no bairro de Albasini, mas esse reportório não cabe neste espaço. Tive oportunidade acompanhar as recordações de infância e juventude de Paulina Chiziane e Natividade Bule na casa desta última na cidade da Matola. Elas falaram de tudo e se detiveram longamente sobre brincadeiras pueris nas lagoas de Nhambavale. As duas senhoras conversam em língua chope como se estivessem a cantar.

A obra tem de Chiziane não parou. Recentemente ela enveredou pela música e ela tem se dedicado a dar visibilidade ao talento dos jovens O CANTO DOS ESCRAVOS, NGOMA YETHO, NA MÃO DE DEUS, o livro AS ANDORINHAS são outras publicações de Chiziane.

A artista Gigliola Zacara teve a ideia de criar este ano o Prémio Literário Paulina Chiziane para incentivar a actividade literária de mulheres, mas infelizmente consta-me que até agora ainda não teve financiamento para materializar esta homenagem à nossa escritora. São acções como estas que poderão ajudar as mulheres moçambicanas a agitarem o sol como tem vindo a fazer a decana ANA MAGAIA com as leituras do texto QUANDO O MUNDO VIRAR de Paulina Chiziane, acompanhada pelo músico Cheny Wa Gune. Cremildo Bahule publicou pela Ndjira uma obra dedicada ao estudo do PROCESSO DE ASCESE DA MULHER na obra de Paulina Chiziane. Outro Bahule, o Dionísio está engajado nas reedições das obras de Paulina Chiziane. A juventude dá fortes sinais de que entendeu a máxima samoriana de que A CULTURA É O SOL QUE NUNCA DESCE. Vários estudos são feitos à obra de Chiziane nas universidades moçambicanas em portuguesas e brasileiras.

Paulina Ricardo Chiziane iniciou a sua vida literária em 1984, publicando contos nas páginas literárias do jornal DOMINGO e da revista TEMPO. A poesia também fez parte da vida literária de Chiziane no início da carreira, recordo-me de uma entrevista que ela deu à saudosa Maria Judite na antena nacional da Rádio Moçambique, onde revelou que chegou a rabiscar alguns sonetos. «Eram coisas da juventude» – sentenciou Chiziane que no dia 4 de Junho celebrou 65 anos de vida. É a mais-velha de um trio de escritores que denomino geração 55, ela e João Paulo Borges Coelho são de Junho e Mia Couto de Julho. Projectámos há dez anos uma edição de um livro reunindo contos deste trio. Espero que um dia se concretize.

Os governos moçambicanos e brasileiro, cada um à sua vez também prestaram o devido reconhecimento à escritora Paulina Chiziane. Há seis anos Paulina Chiziane e o escritor Ungulani Ba ka Khosa. foram distinguidos pelo chefe de Estado português com o alto grau de Gande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique «pelo grande contributo que têm dado para o enriquecimento das letras moçambicanas e para a divulgação de Moçambique e das suas culturas a nível internacional», assim reza a comunicação da embaixada Lusa em Maputo.

Em 2003 Paulina Chiziane foi distinguida com o Prémio José Craveirinha, ex-aequo com Mia Couto. Entretanto o prémio sofreu mutações, passou a ser um prémio dedicado à carreira dos escritores, académicos, etc e ainda bem. Espero ardentemente que o reconhecimento à brilhante carreira literária de Paulina Chiziane seja feito a tempo, tal como a Luís Carlos Patraquim que no próximo mês de novembro celebrará 40 anos do seu livro de estreia MONÇÃO.

Meus parabéns, Paulina Chiziane. Felicidades, sempre!

*Editor e activista cultural

Maputo, 14 de Setembro 2020

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