Uma Luz no Silêncio ou as Entrelinhas de Escutador de Silêncios de Ricardo Santos

Escrito por Léo Cote

É suspeito pormo-nos a falar sobre a poesia, sobretudo, a do Ricardo Santo, por tudo que ele representa e por termos um grau de intimidade. Ao termos decidido seguir esse caminho, fizemo-lo, não pelo que dissemos anteriormente e sim por um conjunto de perplexidades que esta poesia levanta e o tom de simplicidade que ela evoca. E nos referimos à simplicidade e não ao fácil. Pois, como o próprio autor de Escutador de Silêncios assume “A poesia é inútil/De outro modo/Seria coisa vulgar”(p. 13), o que quer dizer que o poeta no seu exercício procura se esquivar do fácil e/ou do vulgar, embora a sua poesia se foque no aparentemente hodierno e trivial. Daí não surgir por acaso a dedicatória a José Craveirinha que estabelece, quanto a nós, uma relação com esse corte aparentemente hodierno e trivial.

Reflectir sobre a poesia é reflectir sobre trilhos que remontam a tradições com mais de dois mil anos e que resultam de territorialidades estéticas e identitárias diversas. A poesia de Ricardo Santos por se ancorar na tradição moçambicana e nas várias tradições em língua portuguesa (e não só) levanta problemas em torno do seu contorno. O olhar atómico do poeta, focado em minudências, nas pequenas coisas que tecem as emoções e o pensamento humano, ante a realidade e a consciência, parece complicar essa delimitação.

O prosaismo que esta poesia reflecte e sugere, resulta da vontade de contar histórias, muito ao jeito da tradição oral, e de construir um discurso que seja a ficção do hodierno e do simples, atingindo o natural e o espontâneo. Não é por acaso que o poema “Ânfora” faz alusão a isso.

A ânfora cheia de aguardente de cajú

quebrou-se

com o impacto da pena que te trouxe.

São assim as cousas mais delicadas. (p. 20)

Lembrando aquilo que faz a festa acontecer e o que nos torna humanos, afinal “onde nascem/os amores mais apetecidos”(p. 21), o da memória, o da homenagem ou do simples tecer de versos. O poema “Aquino de Bragança” representa esse gesto. Talvez, por isso, a poesia de Ricardo Santos oscilar entre o poema manifestatário e o de uma sofisticação quase proverbial. Daí o título: Escutador de Silêncio. Como se o poeta procurasse as pequenas coisas que constroem o dia-a-dia, sem ser notícia, na senda do que Ricardo Santos faz na media social onde actua e se faz presente.

É por isso que vemos surgir cartas-poemas e textos que parecem se deslocar do conjunto, dando ao conjunto, às vezes, um tom meramente interventivo, o que o empobrece a certo passo e mina a eficácia do conjunto. Contudo, o poema “Aylan”, entre outros, representa um desses casos bem conseguidos, ao ver-se o sujeito poético interpelar um dos seus alter egos, o neto que se partiu, deixando a raiva contida e a ternura sem fim do avô Ricardo, dando ao sujeito poético uma configuração humana, em interação com o seu pequeno universo social.

Se a poesia tem como finalidade “a criação do seu próprio espaço, que é um espaço de totalidade ou da infinidade do real”, como nos assevera Piero Bigongiari citado por António Ramos Rosa (1971: 88), então, o universo poético e/ou ficcional e a palavra que a constrói estão além de “qualquer sentido funcional, prático”, mesmo que assim pareça. Por isso, o que se esgrime e se constrói na obra de arte estimula uma acuidade e tensão interpretativa, que torna movediça os contornos de Escutador de Silêncios, no jogo que trava com a realidade e a literatura (e não só), quer pelas semelhanças quer pelos jogos icónicos, ou pelo drama dos jogos de espelhos.

Não se pode analisar Escutador de Silêncio sob a lupa de uma estrita linearidade, uma vez que esta não poderá explicar a variedade estilística e a oscilação genealógica encenada pela economia da obra. A atenção ao circunstancial é enganosa (meio onírica, meio vivida), onde interveem elementos metafísicos e ideológicos, sob o arrasto de um certo sentimentalismo e de uma atitude existencialista e neo-realista, devedoras estas das leituras do poeta. Os jogos intertextuais e as referências evocadas pela obra representam esse espectro.

O sujeito poético é a personagem unificadora destes poemas-fragmentos, que pretendem ir ao encontro do leitor e dialogar entusiasticamente com ele e com o episódico, as epifanias ciscunstanciais e o passado insinuado. Obrigando o leitor a adoptar posturas paralelas e/ou simultâneas sem as quais os poemas seriam lidos sobre uma perspectiva plana e/ou entendidos como nutridos de uma só intenção, gerando equívocos ao fazer parecer ser esta uma espécie de album de velhas fotografias.

Por conseguinte, o leitor de Escutador de Silêncios deverá ultrapassar essa ambiguidade inicial, provocado pelo facto do autor deste livro publicar regularmente textos interventivos na media social, assim evitando simplificá-lo. Estando certo de encontrar uma colectânea de poemas de uma frescura revigorante, que estão longe de ser apenas resultado de uma realidade fragmentada e de um sujeito apenas devedor do mundo que o rodeia.

Léo Cote

Bibliografia

Bigongiari, Piero. (s/d). Poesia Francese Del Novecento. Florença: Valecchi.

Ramos Rosa, António. (1971). Fiana Hasse Pais Brandão: (Este) Rosto. In Colóquio de Letras. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

Santos, Ricardo. (2021). Escutador de Silêncios. Maputo: Alcance.

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