Restituição da dignidade africana

A restituição dos artefactos, objectos artísticos, culturais e não só, deve ser vista como um mecanismo de devolução da dignidade africana, elemento essencial para a construção de um cidadão autónomo, com conhecimento sobre a sua história, suas literaturas, ciências, “sobre aquilo que somos e como somos para as nossas próprias cabeças”.

 Quem assim o defende é a pesquisadora e professora Maria Paula Meneses, que falava recentemente no âmbito do primeiro ciclo de debates “Restituição e Reparação de Identidades Pós-Conflitos”, com o tema “O que é nosso património”.

A conversa foi transmitida na página do Facebook e canal de Youtube do Centro Cultural Franco-Moçambicano e contou com os seguintes oradores: Filimone Meigos, professora Maria Meneses e Célio Tiana, sob moderação de Belchior Canivete.

Trata-se da primeira de um ciclo em formato webinar organizado pela plataforma Mbenga Artes e Reflexões e a Oficina de História de Moçambique, a pesquisadora Catarina Simão, o antropólogo Marílio Wane com apoio do Centro Cultural Franco-Moçambicano, Centro Cultural Moçambicano-Alemão, Africanofilter e Goethe Institut do Quénia.

Para a professora Maria Meneses, o domínio da Restituição tem sido um dos grandes desafios dos movimentos nacionalistas, sendo que Moçambique, em particular, se tem debatido há muitos anos para garantir a devolução do que se deve considerar parte da sua história. “Os anos 80/90 foram, por exemplo, pela devolução dos restos mortais de Ngungunhane”.

Assim sendo, entende que, mais do que restituir objectos físicos, é preciso, acima de tudo, devolver o conhecimento africano “que está, sobretudo, guardado em bibliotecas e arquivos europeus, portanto, uma restituição da dignidade africana”.

No entanto, explica que este é um processo que só será possível se os africanos exigirem. “No caso de Moçambique, vejo uma sensibilidade específica, que foi a decisão do Arquivo Histórico de Moçambique, ligado a UEM, de começar a exigir e a comprar os seus arquivos para conhecer a sua propria história. Isto é só para mostrar que estamos envolvidos em várias acções de readquirir aquilo que nos faz moçambicanos(as)”.

Entretanto, a pesquisadora defende que deve haver uma acção forte da parte do Estado, que se deve posicionar na qualidade de proprietário dos artefactos para provar serem da sua pertença. “Os objectos que entraram em posse do Estado, em teoria não podem ser retirados ao Estado, a não ser que se demostre que houve um roubo ou uma pilhagem. Isto é uma questão de Direito, não tanto do âmbito cultural”.

Neste diapasão, diz que não faz sentido que os Estados Europeus continuem a usar a figura jurídica “Empréstimo Permanente”, criada em 1980, porque “é, em si próprio, um absurdo, porque se é permanente, não é empréstimo, é devolução. Mas estes são eufemismos que, muitas vezes, se encontram para não ferir as sensibilidades europeias”.

A professora e pesquisadora Maria Paula Meneses defende ainda que ao se discutir a questão da reconciliação pós-conflitos, deve-se ter em conta a questão dos conceitos, para depois se aferir se de facto as sociedades nunca fizeram as pazes para uma convivência pacífica. É que para ela, a paz não deve ser vista apenas como responsabilidade política, mas um bem maior que deve envolver toda a comunidade.

“A paz não é um projecto político, apenas dos governos ou forças políticas. A paz, como dizia Mahatma Gandhi, é um caminho em que todos e todas temos de estar envolvidos. Só quando, de facto, nos apropriamos da paz é que ela passa a ser uma realidade vivida e, talvez, muitos destes episódios de violência a nível global possam ser ultrapassados”, disse.

Existem várias versões sobre a história da colonização, mas para a professora Maria Meneses não faz sentido a Europa querer debater esta problemática como algo ultrapassado com a conquista das independências. 

“O colonialismo – tal como, por exemplo, o capitalismo – não acaba num determinado momento porque alguém decreta que esta situação acabou”, afirma, acrescentando que, “o que eu sinto, de facto, é que precisamos de uma descolonização profunda, recíproca, em que estejamos engajados e envolvidos num diálogo sobre quem é que nós somos é o que é que levamos ao mundo”.

É nesta perspectiva que acredita que a paz deve ser cultivada em todos os domínios das artes e da cultura. “Tem sido uma cultura, de facto, de paz, também, mas há uma literatura que acentua muito o conflito. Portanto, eu acho que há, aqui, uma necessidade de ver em quê que nós podemos contribuir, quais têm sido os nossos espaços e contributo para uma história num mundo em que nós somos actores desta transformação social, no bom sentido de integração”.

REPENSAR OS OBJECTOS

Um dos primeiros desafios da devolução dos artefactos é que vão reconfigurar a história que vem sendo contada ao longo dos anos, uma narrativa que foi sendo negligenciada por uma certa historiografia. Para Maria Meneses, os artefactos farão do continente africano uma parte importante da história do mundo.

“Este na verdade é um problema de devolver ao mundo aquilo que nós somos, este é que é um grande processo importante de demonstrar que estes alcances culturais são de uma magnitude tal que não podem ser reféns só de Moçambique. Estamos a falar, por exemplo, das máscaras Makonde, que são tão sofisticadas e que devemos perceber que isto é um grande contributo africano à história do mundo”.

Outro desafio encontrado pela Maria Meneses é que a devolução vai “nos obrigar a um grande trabalho de repensar a exposição dos objectos para que façam sentido para as pessoas da terra de origem. É mais do que perícia criminal, é sobretudo a nossa apropriação dos objectos, ou seja, reapropriação e isso é um processo de descolonização profunda e que a partir do momento que o objecto reencontra o seu lugar de origem, adquire um sentido mais profundo”.

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