A TOXÍNA DOS CATETOS

Proposição I

Escrito por Dionísio BAHULE

[…] Nela, o poema está próximo da origem, pois tudo o que é original é à prova dessa pura impotência do recomeço, dessa prolixidade estéril, a superabundância do que nada pode, do que jamais é a obra, arruína a obra e nela restaura a ociosidade sem fim […].

MAURICE BLANCHOT, O espaço Literário. 2011

Proposição II

[…] O poeta deve compreender que a sua poesia tem culpa pela prosa trivial da vida, e é bom que o homem da vida saiba que a sua falta de exigência e a falta de seriedade das suas questões vitais respondem pela esterilidade da arte. O indivíduo deve tornar-se inteiramente responsável: todos os seus momentos devem não só estar lado a lado na série temporal de sua vida, mas também penetrar uns os outros na unidade da culpa e da responsabilidade […]

MIKHAIL BAKHTIN, Estética da Criação Verbal. 2018

Descemos pela Praça 15 com o ponteio das mãos ao encalço impúdico de um acto – não tanto inumano. Essas coisas de inumano; do outro; do rosto. Confesso: dessa coisa toda tão humana de forçar-nos a penetrar na escuta do outro; desse acto sensível que desce ao lugar do possível e do acto presente – Bakhtin – faz cruzar isso tudo na ponte entre a disposição existencial e o gesto da totalidade; do infinito; da vulnerabilidade. Um dia sobre isso, Levinas – uma dentre várias lanternas com que Bakhtin cruza seu edifício intelectual –  disse alguma coisa como: ser necessário ir ao rosto do outro por ser nele onde se exige a responsabilidade. No dia em que passei por ele estava saindo pela Samora Machel em direção a um estalajadeiro já envelhecido que continuava encostado na soleira d’uma casa de pasto. Dizem alguns que, por lá – nasceu o moderno teatro moçambicano: Txova Xita Duma; Mutumbela Gogo; Gungu – um fabulário aplaudido por nos levar sem travões ao grotesco de uma sociedade recém-saída de uma dupla pilhagem: material e antropológica. Fiquei à margem. Mas depois compreendi que o imperativo ao outro é o degrau da exterioridade; do aqui; porque o infinito enquanto incapacidade de nominar fronteiras [do e no outro] rebela e contesta o esgotamento. Depois que terminamos os portões da Catedral São Francisco para darmos à travessia principal que nos levaria à Rua Júlio Vieira – sossegamos os olhos para uma ruela que nos despistou a um coalho de conchas que nos levou a um sentimento de abandono. Era ritual necessário fazermos o trajecto. A Kibelândia passou a ser o nosso começo de conversa que percorria a noite no 101B, um apartamento exposto às águas e ao espetáculo da modernidade. Naquela varanda – tive a certeza do que significa a experiência urbana; o manifesto da percepção fascinado pela dinâmica da electricidade; a cosmopolita ferrovia dada pelo resultado da expansão da república industrial.

Nelita falou da necessidade de pensar o homem por meio da linguagem; Heidegger também falou dessa escuta do ser por meio da linguagem; principalmente, por meio da poesia. Inclinamos os copos que denunciavam o fim de mais uma garrafa de vinho; aquele foi um momento de aprendizagem. Tê-la por um período de meio-mês fez de mim um sedento rapaz de pastas às costas para fazer um caminho de regresso; de recomeços epistemológicos. Descemos para a sala depois de nos demorar na mediana da casa. Alain Badiou ao procurar situar em termos de tempo e espaço o surgimento da Filosofia – no segundo momento – o alemão – mostra como Heidegger pede ao momento calculador que faça o caminho de regresso à linguagem para compreender o humano o mesmo trajecto que Bakhtin faz transitando Sartre que situa o ser no lugar concreto. Acho que é impossível pensar a existência sem o tempo e o espaço; o grotesco nasce também desta capacidade de espiar com cuidado os sinais dos movimentos e dos vícios da sociedade; de dar um tempero novo aos dessabores e às glórias. Deve ter sido esta capacidade de mover o motor do raciocínio pelo desvio da esquina da insinceridade que ajudou a humanidade a fotografar com mania as vivências. Que poesia! Hoje até compreendo Gil Vicente ao descer ao coloquial para oferecer o que há    de cênico na narrativa; a evidência.

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