Magia, revelação e crossoverfiction em “Por que é um livro mágico?”

Por Pedro Manuel Napido[1]

A obra Por que é um livro mágico?,de Pedro Pereira Lopes e Angelina Neves, ilustrado pelo brasileiro Mauricio Negro, narra o quotidiano da Ndawina, que, apesar de gostar de cantar, de saltar e correr, não gostava de ler. E é graças à “avosidade” que ela passa a gostar de ler.

O narrador, ao mesclar a realidade com personagens da mesma família (neta/avó), denuncia a falta de oportunidade do público infantil no acesso ao livro a que é destinado, além de fazer expressiva crítica à falta de formação do leitor literário, válida não só para Moçambique, como também para vários outros países do mundo.

A obra Por que é um livro mágico? está repleta de intertextos e é escrita com grande mestria e originalidade. O projecto gráfico-editorial é de alta qualidade, uma vez que expõe ao leitor a delicadeza e a sensibilidade dos sentimentos das personagens, em particular, e do povo moçambicano, em geral.

Tudo isto nos autoriza afirmar que esta é uma das melhores obras de literatura infantil escritas no período pós-independência, visto que, através de uma linguagem acessível e envolvente, respeita o seu público, permitindo ao leitor infantil possibilidades amplas de dar sentido ao que lê, possibilitando, ainda, o desenvolvimento da afinidade deste com o ambiente letrado.

O narrador busca mostrar que o ser avó implica uma relação trigeracional: avós, filhos e netos. O neto pode ser este objecto de investimento. Reparando as perdas e assegurando um sentimento de continuidade, que não são apenas no plano biológico, dar continuidade à família. Mas, sobretudo, ao acto de o avô passar sabedoria e as vivências acumuladas. Do mesmo modo, o narrador busca representar, na obra, que “ser avó” é um sinalizador de que avançámos no tempo de nossa existência. Ou seja, ser avó nos remete para a questão da finitude, ainda que vejamos a vida se prolongando através dos netos.

Entendamos que os limites, as modificações do processo de envelhecimento, não são doenças; mas mudanças e diminuições de ritmos: a assexualidade, o desejo não desaparece, mas ocorrem modificações também nesta área, como todo o resto. Há uma tendência a comparar o desempenho da fase juvenil com o da fase actual. Desta maneira, o corpo adulto e útil é desejado, e o corpo velho que não mais reproduz nem produz, tem uma tendência de ser marginalizado e atormentado.

Descobrimos, na obra, duas vozes (neta e avó) que se intercalam, que se alternam, de modo que os episódios da vida adulta e infantil se fundam e, em muitos momentos, se (con) fundam, sendo ao leitor oferecidas apenas pistas para que (re) organize a narrativa.

Tudo indica que no nosso país, a convivência entre os netos e os avós nem sempre é pacífica. Portanto, enquanto tema fracturante, isto é trazido à tona, convidando o leitor não apenas a contemplá-lo, mas a reflectir e a compreendê-lo como situação integrante do seu contexto.

Podemos afirmar que esta obra está adequada à competência linguística da criança para ler os signos, pela diversidade e tratamento dado aos temas, no atendimento aos interesses do leitor, aos diferentes contextos sociais e culturais em que este vive e ao nível dos conhecimentos prévios que possui. Ela, a obra, permite que o texto produza certos sentidos no leitor; tem poucas páginas, letras de tamanho maior, muito espaçamento, com ilustração e não requer muita maturidade do leitor.

A estrutura e o estilo das linguagens verbais e visuais procuram adequar-se às experiências da criança. Os temas são apresentados de modo a corresponder às expectativas do leitor e, ao mesmo tempo, superá-las, mostrando algo de novo. A linguagem se mostra não apenas como um meio de comunicação, mas um objecto de admiração e espaço da criatividade. Misturada à vida social, a leitura desta obra merece atenção de todos nós, para constituirmos uma prática capaz de questionar o mundo já organizado, propondo outras direcções de vida e de convivência cultural.

Temos, nesta obra, a ilustração de Mauricio Negro. Assim, ela pode ser lida como um texto híbrido, verbal-visual, em que ocorrem dois discursos, o verbal e o visual, criando um diálogo entre texto e ilustrações; há convergência de sentidos, ou seja, os sentidos da ilustração convergem para os sentidos do texto e os sentidos do texto se projectam sobre as ilustrações e vice-versa.

O colorido patente em várias páginas da obra dá ao público-leitor o prazer do jogo visual, despertando a curiosidade e as cores bem vivas e contrastantes reforçam a alegria ou o bom humor sugerido pelo desenho.

Na página 18 da obra demonstra-se que a boa associação das cores serve como estímulo para a criança no que diz respeito à leitura, uma preferência dos dois géneros (masculino e feminino) pelo livro colorido.

Recorrendo a uma paleta de cores limitada, composta exclusivamente pelo azul, preto e branco, o ilustrador explora, de forma subtil, o jogo de cores, formas, perspectivas e pontos de vista, que criam um efeito de pontuação na leitura, marcando o ritmo da mesma em cada página da obra que se abre.

Numa outra perspectiva de análise, a obra Por que é um livro mágico? pode ser enquadrar na “crossoverfiction”, para a qual as ferramentas de análise são solicitadas a lidar com notável ambivalência, isto é, ela rompe com o destinatário hipotético (a criança). “O avanço da noção de literatura infantil e juvenil culminou no desenvolvimento da crossoverfiction, entendida como textos que atravessam fronteiras e são capazes de serem interpretados por crianças e adultos” (Zuza, 2014, p. 87).

Assim, olhando para este tipo de literatura, a presente obra pode não ser destinada apenas ao público infantil, como também aos jovens e adultos.

Segundo Zohar Shavit (1986), os escritores transitam entre duas soluções extremas para a questão: a) ignorar o público adulto, solução típica do sistema não canonizado; e b) dirigir-se primeiramente aos adultos, usando as crianças apenas como um pseudo-destinatário, solução típica do sistema canonizado.

Por que é um livro mágico? é uma obra complexa com múltiplas possibilidades de leitura, não organizada em torno de oposições binárias tradicionais entre bons e maus, de final aberto, ambíguo e moralizante, revelando-se capaz de seduzir leitores com experiências de vida (de leitura) diferenciadas e, até, sofisticadas. Ramos e Navas (2015) referem que Rachel Falconer (2007; 2009; 2010) consideram que o crescimento deste tipo de publicações encontra explicação na evolução da sociedade contemporânea, com a diluição de fronteiras entre grupos etários.

Na perspectiva crossover, as páginas 12 a 15 desta obra, a ilustração, olhando para as tranças e o vestido da personagem, fica patente o esforço realista das imagens, próximas de uma memória fotográfica, implicando a criação de cor local para além do impacto dos efeitos de luz e sombra, modalizadas pelo uso da capulana, assim como das tranças, nas suas múltiplas facetas, pelo povo moçambicano.

Os aspectos ligados ao discurso ágil, vivo, capaz de prender a atenção do leitor, que caracteriza a obra, fazem da leitura uma experiência intensa e única. A promoção de certo visualismo, de cariz quase cinematográfico, resultante da descrição rápida, mas forte e intensa, colabora na identificação imediata dos espaços e das personagens e da relação que se estabelecem com eles (a casa da Ndawina e do avó) como pertencimento simultâneo em ambas.

Por isso, o espaço, nomeadamente a casa, é um dos eixos estruturantes na obra. “Sabemos que o conceito de “lar”, quase entendido como um “mito” (Ramos e Navas (2015, p. 235), é central na infância e na literatura infantil e juvenil em geral. Para Ndawina, a casa, na sua ligação à família, enquanto abrigo e refúgio, configura um verdadeiro espaço vital e crucial para a construção da sua identidade.

O discurso oscila entre a dimensão reflexiva, associada ao discurso da criança, próximo do monólogo interior, e a sensorial, ingénua e inocente, mais próxima da experiência infantil do mundo. Em ambos os casos, o discurso é sempre verosímil, facilitando a identificação imediata dos leitores com a voz narrativa.

São igualmente interessantes os contágios e as intromissões (“de textos da não ficção”), a partir da página 17, nomeadamente de cariz científico, reportando-se aos conhecimentos resultantes das leituras realizadas em âmbito de formação escolar dos autores da obra, que, segundo Rouxel (2013, p. 23), “dá sentido à prática da leitura, pois ela é, ao mesmo tempo, o signo de apropriação do texto pelo leitor e a condição necessária de um diálogo com o outro, graças à diversidade das recepções de uma mesma obra”. Por seu turno, Iser (1996, p. 197) afirma: “o texto só existe pelo acto de constituição de uma consciência que o recebe”. Do mesmo modo, Eco (1976, p. 39) considera: cada “leitura”, “contemplação” e “gozo” é uma forma singular de execução da obra artística, que é aberta na medida em que é polissémica, sendo completada pelo intérprete no momento da sua fruição estética. Esta perspectiva do conhecimento das teorias sobre a recepção do texto literário inclui a abordagem de Roland Barthes: “aquele que contenta, enche, dá euforia, aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável da leitura” (Barthes, 1973, p. 49)

Para terminar, podemos afirmar que a obra cumpre o seu dever colocando enormes desafios às crianças, jovens e aos adultos, não só sobre a necessidade do incentivo à leitura na família, no espaço escolar e na comunidade, como também no repensar em projectos multiplicadores, principalmente na criação de círculos de leitura nas comunidades voltados ao fomento da leitura e do livro. Deve-se criar Bebetecas (bibliotecas nas creches), proporcionando o acesso à cultura a partir da tenra idade. É necessário que as universidades realizem e divulguem pesquisas sobre letramento literário, propondo estratégias de formação de animadores de leitura, elaborando projectos sobre o incentivo à leitura, tanto nas comunidades assim como nas escolas do ensino primário e secundário.

Referências bibliográficas

BARTHES, Roland. O prazer do texto. Paris: Éditions du Seuil. 1973.

ECO, Umberto. Obra aberta. São Paulo: Editora Perspectiva. 1976

ISER, Wolfgang. O ato de leitura: uma teoria do efeito estético. Trad. Johannes Kretschmer. São Paulo: Ed. 34, 1996, v. 1 e 2.

RAMOS, Ana Margarida e NAVAS, Diana. Narrativas juvenis: o fenómeno “crossover” na literatura portuguesa e brasileira. Revista de literatura infantil e xuvenil. N⁰ 2/2015/pp. 233-256.

ROUXEL, Annie; LANGLADE, Gérard; REZENDE, Neide Luzia. (org.) Leitura subjetiva e ensino de literatura. São Paulo: Alameda, 2013. ROUXEL, Annie. Práticas de leitura: quais rumos para favorecer a expressão do sujeito leitor? In: Cadernos de Pesquisa, v. 42, nº 145, p.272-283, jan./abr. 2012.

ZUZA, Júlia. O fenómeno crossoverfiction e as obras editadas para crianças e jovens de Mia Couto e Luandino Vieira: uma discussão sobre o público leitor. ImpossibiliaNº8, páginas 86-103 (Octubre 2014) ISSN 2174-2464.


[1] Docente de literatura infantil e juvenil na Universidade Licungo – Quelimane.

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