Que outras prioridades?

Um beco habitual no periférico Sistema de Arte moçambicano para justificar a falta de investimento financeiropor parte do Estado, é o país ter priorizado outras áreas. Resposta que escancara a marginalização deste sector talvez a partir da percepção redutora e simplista da arte enquanto mero lazer.

«As músicas de amor /inventam o amor», como canta o músico brasileiro Cícero Lins a nos lembrar que a arte tem como matéria-prima e objecto de trabalho o imaginário colectivo, ainda que para fazer um trabalho singular, nunca antes visto. E que no depois de processar esse material devolve a sociedade, que a partir do mesmo desenvolve a sua compreensão sobre a realidade.

Em entrevistas, conversas corriqueiras, artigos de opinião e afins, regularmente deparo-me com este argumento: o país não pôde investir no sector porque teve outras prioridades. É como se estimular a capacidade de reflexão – uma das valências da arte – fosse marginal, trivial. 

Olhando para a História de Moçambique, entretanto, este subterfúgio corre sérios riscos de perder-se no abismo escuro da falácia. Após a eterna madrugada de 25 de Junho de 75, proclamada a independência e instalada a Primeira República, foi criado o Ministério da Educação e Cultura que integrava o Instituto Nacional da Cultura; Serviço Nacional de Bibliotecas; Serviço Nacional de Rádio Educativa e a Biblioteca Nacional.

No mesmo contexto a recente Direcção Nacional de Cultura funda, em 1977, o Centro de Estudos Culturais e realiza uma Reunião Nacional de Cultura, programas de intercâmbios, formação de grupos em diversas linguagens. 

Os marxistas-leninistas que lideram o país estão cientes do papel das artes e da cultura na construção de um individuo. Não é fruto do acaso o Ministério da Cultura realizar m 1978 o Primeiro Festival Nacional de Cultura, na altura designado Festival Nacional de Dança Popular, um evento que mobiliza o país, e celebra a diversidade, o arco-íris, a pluralidade desta nação através da arte.

Em 1979 a Rádio Moçambique, emissora pública, cria a Banda RM, e num regime especial, os integrantes passam a funcionários da nossa rádio mãe. O país tenta se aguentar numa guerra de desestabilização que sabota infraestruturas, rasga sem dó o tecido social e brutaliza a humanidade de moçambicanos inocentes, culpados apenas de existirem, de estarem vivos.

No calor da Guerra, em dezembro de 1983 através do Decreto Presidencial n.º 84 é reduzido a Secretária de Estado da Cultura, continuando a responder ao Conselho de Ministros. Já no período Chissano, no crepúsculo de uma nova Ordem nacional, em 1987, a Cultura volta a ter Ministério, igualmente por Decreto Presidencial.

Doravante, a pasta incluiu a gestão do Instituto Nacional do Livro e do Disco (antes do Ministério da Informação) que recebeu seu estatuto interno apenas em 1991, e a ser responsável pela proteção legal dos bens materiais e imateriais e do patrimônio cultural moçambicano.

Nessa altura os artistas mobilizam-se para profissionalizar-se. A semelhança dos Bolchevique (protagonistas da Revolução Russa) o Estado propõe a criação de associações. São desse contexto as Associações dos Escritores e dos Músicos, por exemplo que recebiam apoio financeiro do Estado.

Nos últimos anos da década 80, o fim do nosso ensaio para o Socialismo cruza a porta do país com o Capitalismo a trazer, de forma ainda tímida a liberalização da comercialização, a introduzir as políticas da Segunda República, uma constituição que abre Moçambique para a democracia. É a partir dessa altura que o país gradualmente introduz políticas de regulação da dimensão econômica das atividades artístico-culturais.

Ainda nos anos 80 são criadas as escolas de arte na sequência da fusão do Centro de Estudos Culturais. E o projecto das Casas de Cultura, iniciado em 1978 com a inauguração da do Alto Maé em Maputo, nalguns pontos do país prossegue. 

As maiores empresas e instituições estatais compram e encomendam pinturas, murais e esculturas para as suas instalações. A companhia Mutumbela Gogo durante a semana apresentava teatro nas empresas, entre as quais públicas para reforçar as contas que não se aguentariam só com as bilheteiras. E as instituições, mobilizadas para a causa da Arte, desembolsava verbas para esta finalidade. O que vai se reduzindo na década 90 até evaporar ou circunscrever-se a poucas instituições do Estado a fazê-lo. Aliás, é igualmente ainda no período da guerra que vários artistas plásticos fizeram intervenções públicas como murais, financiados pelo Estado. 

Artistas de várias disciplinas, não apenas músicos, integram as comitivas presidenciais e em outras ocasiões articuladas com o Estado apresentam seus trabalhos em várias Repúblicas Soviéticas. 

O Instituto Nacional do Livro e do Disco (INLD) apoia a impressão de livros com exemplares de 3000 mil exemplares (actualmente a média de publicações oscila entre 300 e 500, exceptuando os autores mais mediatizados e estabelecidos).

A primeira geração de cineastas moçambicanos surge por mão estatal através das actividades do Instituto de Cinema, que tinha uma brigada móvel de transmissão de notícias o Kuxakanema. É no meio destas circunstâncias que realizadores do quilate de JL Godard, Jean Rouc, entre outros.

Nas artes plásticas, ainda na década 80, é criada a Loja-Galeria, cujos detalhes pode encontrar pormenorizados na série Restauro (que dedicamos a publicação da história da modernidade das artes plásticas moçambicanas de até aos anos 90).

A dança tem a sua projecção através da Companhia Nacional de Canto e Dança fundada em 1979 de propósito para difusão da cultura moçambicana, aglutinando a diversidade que nos caracteriza.  

Vemos investimento e atenção especial ao sector das artes no país num momento crítico de gestão da Guerra dos 16 anos que por sua vez está implicada num quadro internacional da Guerra Fria, da afirmação pelos direitos civis dos Negros – animados pelas independências africanas, de certa maneira, que por sua vez se tinham inspirado nas reivindicações das suas diásporas, entre as quais no século XX se pode apontar o Renascimento Negro de Harlem nos EUA – entre outros. É certo que não se pode ignorar o condão propagandístico no incentivo as artes no período socialista, mas não se pode ignorar que da protecção e investimento feito nas artes tenham surgido os nossos génios.

Era expectante que conquistada a paz, o país investisse e se protegesse ainda mais este sector mesmo durante e depois da migração para a o Mercado Livre. Esta reivindicação assenta na compreensão da Arte como um lugar de construção, manutenção, reabilitação ou até invenção das identidades de um povo.

E nestes tempos pandémicos, depois dos polémicos cinco milhões do Arte no Quintal, qual é a ideia? É certo que há um incentivo para os artistas se inscreverem no Instituto Nacional de Segurança Social. Mas o benefício dessa inscrição não é imediato e num momento em que escasseia dinheiro, é para contribuir como? Uma última pergunta: que prioridades foram essas?  …e, por favor, nos tragam os resultados.

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