A PRM quer resgatar a PIDE ao censurar as Artes?

Admiro aos que conservam a dádiva do Espanto. Respeito a quem ainda consegue se indignar com certo tipo de decisões políticas reveladoras de uma visão redutora e simplista da Arte numa sociedade – a arte até porque não existe fora da sociedade. A Polícia da República de Moçambique (PRM) proíbe uso da sua farda em performances artísticas.

Entre outros factos, ainda é fresco o reconhecimento do Presidente da República, Filipe Nyusi da situação difícil que os artistas estão a enfrentar com os efeitos das medidas sanitárias, dos estados de Emergência e de Calamidade.

Parafraseando o Chefe de Estado, os artistas e os profissionais das Artes estão, de longe, entre as maiores vítimas económicas da COVID. É um sector económico e profissional que precisa de fontes de rendimentos para sustentar as suas famílias, de incentivos, de alento nestes tempos indescritíveis.

Os Teatros, os Centros Culturais e outros espaços de Arte estão encerrados ao público – com algumas aberturas curtas ao ritmo da pandemia -, desde o ano passado. O artista, sobretudo o performativo, está sem espaço de trabalho, sem apoio, a viver ao Deus dará.

Embora não surpreenda, a decisão anunciada por Bernardino Rafael, Comandante-geral da PRM, ignoram o facto deste país ter sido inventado e anunciado, ainda nos anos 40 do século XX, pela poesia, pela literatura, pela arte.

O artista é um ser social que bebe do seu quotidiano para produzir a sua obra, a matéria-prima do artista são as nossas vivências, os personagens do nosso dia-a-dia, o nosso imaginário, as nossas infraestruturas e outras matérias e formas. O artista pega na realidade, retrabalha nela, (re)significa-a e traz de volta a esfera pública para fruição interpretação (crítica, no ideal).

Umberto Eco, por exemplo, descreve que na percepção da Estética da Formatividade o artista inventa “coisas” ou artefactos totalmente novos, mas esta novidade não surge do nada, surge, como livre materialização de sugestões da realidade.

A discutir as relações entre política e a estética na “Partilha do Sensível”, Jacques Rancière, através de Platão e Aristóteles sugere que a arte seja a coreografia da vida de uma sociedade num determinado tempo, sob determinadas circunstâncias e condições.

Com efeito, limitar a arte é o mesmo que ressuscitar as atitudes da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) e todos seus antecedentes coloniais. CENSURAR a criatividade, a liberdade de expressão e artística é estuprar o artigo 48 da Constituição da República.

A decisão de impedir que os artistas vistam as fardas da Polícia da República de Moçambique vai numa direcção contrária a Democracia que é uma das conquistas, a concordar com os professores Severino Ngoenha e José Castiano, da II República moçambicana. Até mesmo Samora Machel questionado por ter conduzido um regime que se pretendia socialista com alguns traços de autoritarismo, ao receber, em 1985, a Banda Ghorwane na presidência, crítica ao regime, atribui-lhes o epíteto de “Os Bons Rapazes”, justamente por iluminar o que estava a correr mal.

De acordo com O País, Bernardino Rafael alega que a decisão resulta do facto dos artistas usarem as fardas “em actuações que não abonam a boa imagem da corporação”. Que actuações são essas? Serão as que demonstram os agentes na sua já institucionalizada corrupção (o famoso refresco?)? Serão as demonstrações da inércia organizada? Se for por estas razões é a corporação que precisa se corrigir, não os artistas que são o espelho da sociedade.

Não podemos perder de vista que a Arte tal qual o Jornalismo, obviamente que a primeira revestida de estética, transmite (ou emite) informação. Mikhail Bakhtin nos volumes dos livros em que discute o Cronotopos – configurações de tempo e espaço representadas na linguagem e no discurso -, traz sempre a luz que a articulação entre o tempo e o espaço são caros a arte por permitirem aceder ao contexto ou momento histórico de uma obra. Ou seja, através, por exemplo da música de Jeremias Ngoenha, da pintura de Mankew, poemas de Álvaro Taruma é possível ter acesso ao que era o meio dos criadores quando as fizeram.

A Polícia da República de Moçambique quer impedir ao país de se ver no espelho? Ou será o que agente da Polícia é um ser alheio ao meio social? Ou estará a PRM a confundir o país com uma ditadura?

Com esta tentativa de CENSURA EM PLENO SÉCULO XXI, de atacar a Democracia ao estilo Bolsonaro, a PRM nos leva a temer que ainda não tenhamos resolvido às sequelas do período da Guerra Fria e do conflito dos países da Linha da Frente, de que fomos membros fundadores, contra o apartheid.

Na nota contextualizadora do artigo O Impedimento a uma Informação Objectiva sobre a África Austral: Um Ponto de Vista Africano, integrada no livro À Sombra da Utopia, o autor José Luís Cabaço que foi ministro da Informação – entre outras funções governamentais e partidárias na Frelimo – explica que Moçambique, Angola, Botswana, Tanzânia e Zâmbia foram vítimas de narrativas preconceituosas, nalguns casos ofensivas e redutoras por parte da media internacional. Em certa medida, argumenta, tal construção negativa era consequência de uma visão contaminada pelas elites brancas sul-africanas de Pretória e Joanesburgo, onde os correspondentes das grandes estações estavam instalados. Como modo de se defender, antes da conferência de setembro de 1984 em Washington, José Luís Cabaço conta que a estratégia foi dificultar o acesso a informação e “ataque” a crítica não fundamentada.

Cabaço reconhece que entretanto esta opção circunstancial teve como consequência o enraizamento desses hábitos como cultura do Estado.

Fui buscar este exemplo da origem da limitação da circulação de informação por, como referi acima, ser o denominador comum entre o Jornalismo e a Arte. Concluo que se esta triste decisão está na mesma linha, na ilusória tentativa de impedir que a informação sobre a corrupção institucionalizada circule e uma reflexão crítica seja estimulada através da arte a corporação está, antes e depois de antidemocrático, a tentar tapar o sol com a peneira. E artistas, não nos enganemos isto pode abrir precedentes para que daqui a mais um tempo não possamos ver a Polícia e os próximos a fazerem o mesmo representados ou caricaturados nas pinturas de um Ricardo Pinto ou Adecoal, por exemplo. Como se diz na corporação: estejamos vigilantes, a Democracia não se negoceia.

A minha capacidade de espanto desistiu de existir ao observar que, por exemplo, falta investimento nas artes alegadamente porque o país teve outras prioridades (para a semana iremos reflectir sobre este argumento) e pelo facto de, não obstante haver consciência de que os artistas e profissionais desta área cronicamente precária estarem a ser vítimas económicas da pandemia, depois do controverso Arte no Quintal não vermos outra solução para minimizar o impacto. Mas pronto, é só um comentário.

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