Escrever o quê?

Texto de Aníbal Aleluia

Não colocaria esta pergunta a um poeta por, em meu entender, a poesia gozar de um estatuto especial que a põe ao abrigo do problema do sujeito/objecto e outros tão agudos quando se trata de prosa.

Como forma e conteúdo, a poesia é tão livre como condicionada é a prosa. Enquanto a primeira pode até enveredar pelo campo do «concreto», a última só esporadicamente se pode servir do tropo e da licença. A poesia chega a utilizar aquele esoterismo que obriga os leitores a subsunções tão díspares que os levam à compreensão de imagens que o próprio poeta por vezes não concebeu.

Em prosa isso seria tão bizarro que os leitores não tomariam o autor a sério. É que a prosa carrega consigo problemas de forma e conteúdo. Além do sujeito/objecto, – núcleo da obra -, o prosador pouco mais necessita do que uma possível euforia e a necessária lógica para o cabal cumprimento da tarefa que se houver proposto.

Quer isto dizer que se o trabalho for vazio de conteúdo de nada servirá a ornamentação com que o autor o atavie.

E quando é que se chega à conclusão de que tal ou qual obra é oca? As opiniões divergem. As apreciações ficam condicionadas, regra geral, a critérios não intelectuais. Há quase sempre, aquilo a que Pierre Barberis chama «resistências». Assim, Victor Hugo foi hostilizado por ter escrito O Último Dia De Um Condenado, Gustavo Flaubert processado devido a Madame Bavary e o nosso contemporâneo, Aquilino Ribeiro, proscrito por Salazar por causa de Quando Os Lobos Uivam.

E contudo, nenhuma destas obras atacava quem quer que fosse. Limitavam-se a denunciar situações que convinha eliminar. Uma censurava e combatia a pena da morte e as outras retratavam erros da sociedade. Todas serviam nobres ideais – o desejo de que os homens fossem mais humanos e as pessoas não se deixassem escravizar por ambições desmedidas. Nenhuma intenção criminosa, antes propósitos meritórios. Só que os que pensavam doutro modo acharam isso condenável. 

Este é o problema do criador literário. E não se julgue que ele preocupa poucos. Em todas as latitudes onde o realismo crítico está posto de parte as pessoas se interrogam sobre o porquê do alheamento dos que escrevem face aos problemas que os rodeiam.

Entre nós num, colóquio efectuado aquando do primeiro aniversário da AEMO[i], um poeta quis saber da razão que leva os jovens escritores a inspirarem-se apenas no passado evitando a abordagem dos problemas conjunturais. Indicou até, como exemplo de tema a explorar, as «bichas».

– «Temos medo foi a resposta de um dos jovens.» – foi a resposta de um dos jovens.

E pasmo geral, longe de negar a existência do tal medo, confirmava-o na medida em que se sabia que todos se interrogavam sobre a ousadia de alguém exteriorizar tão «imprudentemente» o seu pensamento.

Alguns anos antes, um ficcionista censurava a atitude dos jornalistas conterrâneos por se mostrarem paternalistas para com o poder, nos seus trabalhos, e carecerem de censo de humor.

O próprio Presidente da República, também homem de letras, falando aos dirigentes da AEMO em 1983, manifestou a sua estranheza pelo mutismo dos nossos escritores face aos problemas do país, considerando o seu apêgo no passado.

2

Acontece que herdamos do colonialismo português diversas sequelas. O medo é uma delas. Não é impunentemente que se vive sob o julgo alienígena durante vários séculos. É isso que explica a persistência de um medo inelutável – continuação do medo da polícia política portuguesa (PIDE) – e do medo do policiamento ideológico representado pela CENSURA.

Foram estas situações que forjaram amordaça de ferro para as nossas bocas, o capacete de aço para os nossos cérebros e as luvas de bronze para os nossos dedos. Assim nos foi vedado falar, pensar e escrever durante decénios. 

Mas os cépticos perguntar-nos-ão: – quem impede agora os vossos escritores potenciais de se manifestarem?  Se dantes temiam os cérebros da PIDE e da CENSURA, onde estão os seus trabalhos de gaveta? Para eles às escolas superiores eram tabernáculos de Jeová, sim, mas a sua autodidaxia?

E julgaram ter-nos cilindrado. Contudo, não é racional acreditar que uma comunidade coisificada durante séculos sacuda e elimine os complexos de que foi vítima só porque adquiriu a sua independência há menos de uma década.

Muitos não elaboraram trabalhos de gaveta porque estavam desesperados. O «poder de antecipação» de que fala Barberis não é dado senão a raros eleitos. Quanto à autodidaxia, não se obtém sem livros. E já há 30 anos, o malogrado A. Caetano Fernandes escrevia na ELO que um dos dilemas do moçambicano com a vontade de se ilustrar a carência de dinheiro era não saber como optar entre o livro e as batatas…

Sabe-se que no estudo de dinamismo mesmo social encontramos no poder aquisitivo uma das funções sociais determinantes da mobilidade vertical. Ninguém tinha disponibilidade em dinheiro para comprar livros, de se instruírem, de serem autodidatas.

Mas nesse assunto de o que é escrever não estamos sós. Países com boas tradições de realismo enfermam do mesmo mal. É um compatriota de Emílio Zola quem faz esta pergunta: – «porque é que actualmente, a par de textos – limites, não temos textos de experiência, uma forma crítica, desmistificante, a sociedade em que estamos e que não queremos?»[ii]

Sublinharei que não queremos para que se frise bem a intenção de uma crítica de tudo quanto seja contra o bem geral. Compete, portanto, ao escritor contribuir para a solução dos problemas do País.

Quando o Paulo Éluard afirmou que o poeta (eu diria o escritor) tem «o poder de concorrer para a criação de uma vida mais feliz» já indicava o que escrever. 

Trata-se, pois, de focar temas de interesse geral sobe inspiração da experiência pessoal. Barthes ao formular aquela pergunta convida os principais escritores a repensarem o sujeito/objeto da sua actividade criadora. Foi o divórcio entre o escritor e o leitor a origem do descrédito dos intelectuais que marcou o relacionamento autores/leitores neste século. É indispensável, portanto que o homem de letras se preocupe com a globalidade dos homens.

3

O grande mal dos moçambicanos é não terem uma tradição literária. Havia, por certo, no tempo colonial, uma literatura em Moçambique, mas não de Moçambique.

Alguns «Antónios-Enes-em-Cuecas» pontificavam nas tertúlias laurentinas. Freneticamente operosos, opiniáticos, chauvinistas, tinham a obsessão dos modelos «metropolitanos» e a sua produção ou era uma apologia apaixonada da colonização ou uma espécie de trabalho black face minstrels visando ridicularizar e denegrir o colonizado. Expressavam apenas as «suas» verdades; defendiam a hegemonia política; denegavam virtudes aos subjugados. E, como detinham o privilégio do estudo, só eles tinham capacidade expressiva, só as suas vozes tinham audiência dentro e fora daqui. 

Uma voz que despoletasse a explosiva boceta dos nossos problemas seria silenciada por tai intelectuais primeiros, antes de prestar contas à polícia política[iii]. Ou louvar, ou iludir, ou emudecer.

Com isto tudo permanecemos acríticos componentes do rebanho de Panurgo. Não me espantaria se viesse a saber e alguns ponham as seguintes questões:

  1. Para quê pegar em temas capazes de acarretar dessabores se com outros, acomodatícias, só fruiria benesses? ou
  2. Para quê abordar tal ou qual temática se com elas arriscaria a minha reputação perante os meus conterrâneos?

Sim. Todos os actos de Homem são condicionados por este estímulo ou objecções da sociedade. Mas, desde que o potencial escritor se ponha aquelas perguntas já se pode considerar desviado do caminho exacto, pois todas as suas acções se processam sob o signo do egoísmo. Mas o objetivo da escrita deve ser o interesse geral. Por isso Pierry Barberis diz que «o texto só existe em função dos seus leitores», querendo com isso significar que só é válida a escrita em que haja realismo.

Contudo ele próprio reconhece: «Há resistências a esta leitura, resistências que não são de ordem intelectual abstrata, mas antes políticas e extremamente concretas».

Mas ninguém ignora que a escrita também é Poder. Poder tão forte que tem forjado Revoluções, tem impulsionado a Ciência, tem fecundado a Filosofia. Poder tão forte que pode matar o próprio medo instilado por séculos de operação.

Mas a escrita só é Poder quando consegue dar resposta a esta angustiante pergunta: «Escrever o quê?»

E a resposta é só uma: «Escrever textos de experiência; denunciar a mentira; combater as injustiças; dignificar o Homem. É uma tarefa gigantesca exigindo vontade e dedicação. E coragem também.


[i] Associação dos Escritores Moçambicanos

[ii] A Roland Barthes – Diálogos France-Culture

[iii] Foi o que aconteceu a Noémia de Sousa e outros.

Breve Biografia

Aníbal Henrique Aleluía foi ficcionista e jornalista moçambicano. Nasceu em 1926 em Inhambane. Faleceu em 1993, em Maputo. Exerceu diversas profissões, desde aprendiz de caixeiro, funcionário administrativo, enfermeiro, solicitador de entre várias outras. Colaborou no Itinerário, O Brado Africano, A Voz de Moçambique, Tempo, Vértice.

Aníbal Aleluia publicou em 1987 MBELELE E OUTROS CONTOS, O GAJO E OS OUTROS, e em edição póstuma CONTOS FANTÁSTICOS.

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