Conto de Cupertino Freitas

Texto de Cupertino Freitas

Quarenta


Não é de um pequeno percalço que estou falando. Como daquela vez em que o sorvete de coco com abacaxi caiu da casquinha antes de você dar a primeira lambida. Você tinha dito para eu não tomar nada gelado. Me proibiu, até. Eu, com quase quarenta graus de febre, olhei aquela bolona despencar e tive que conter o riso. Voltamos os dois para casa sem tomar sorvete. Não estou falando de algo realmente muito desagradável, como no dia que o rapaz que você ia ajudar a encontrar um endereço apontou uma arma para sua testa. Nem estou falando de coisas ainda mais sérias. Trágicas. Como você perder a conexão do voo internacional e não chegar a tempo de se despedir de sua mãe em seu leito de morte. Ou você esfregar os olhos por conta da vista embaçada e descobrir que estava com uma infecção ocular seríssima que quase lhe tirou a visão do olho esquerdo. Ou do sinal que você deixou para tirar depois e o médico disse que era cancerígeno. Na verdade, estou falando é de você decidir me abandonar. Assim, do nada. Depois de tanto dizer que me amava. É desse tipo de coisa que estou falando. Desse tipo de perda. Porque você disse; muitas vezes disse que me amava. E jurou que nunca ia me deixar.
Seu aniversário de quarenta anos, semana que vem, não vou mais comemorar com você. A reserva que eu penei para fazer no seu restaurante de frutos do mar preferido, foi em vão. Você nem teve a consideração de comemorar seu aniversário comigo. O meu aniversário de quarenta anos, no ano passado, a gente comemorou lá. Nem era meu restaurante favorito. Você pensou primeiro em você. Até no dia do meu aniversário.

Pintura de João Timane
Pintura de João Timane


Tantos anos juntos, tanto tempo. E eu me acostumei a gostar dos seus gostos. A ficar feliz quando você ficava feliz. Eu era feliz assim. E era assim que a gente vivia a nossa história. Uma história que eu gostava imensamente e que não era para ter terminado assim. Não assim. Nem ao menos tive a chance de implorar para você ficar comigo, de pedir para você não partir. De dizer, fique pelo menos até que eu me acostume com a possibilidade de você me deixar. Você não quis ficar e não me deu explicação. Então vá, vá de vez e me deixe com essa falta imensa de você. Vá, que eu fico aqui com tudo ruindo dentro de mim. Despencando.
Quarenta graus de febre, marca o termômetro. Quando muda o tempo é sempre assim. Eu pego uma gripe forte. Fico de cama quase uma semana. Nada mudou. Eu não mudei. Mas você, nunca mais será, aos meus olhos, quem foi um dia. Porque o que você fez comigo, o que acaba de fazer comigo, isso não tem perdão. Nunca vou lhe perdoar. Nem vou guardar lembranças de nada, pois nada mais importa. Vou tomar uma aspirina e um remédio para dormir, fechar a porta, as janelas, as cortinas, apagar as luzes, e dormir. Vou dormir por três dias, três noites. Por uma semana inteira. E vou esquecer. Desse dia, dessa hora, desse momento em que eu, aqui da varanda, vejo seu corpo inerte, lá embaixo, a quarenta metros de mim.

***

Cupertino Freitas é escritor, dramaturgo e professor de Escrita Literária. Tem especialização em Roteiros para Cinema e é mestre em Relações Internacionais. Autor dos romances Judas no Paiol (Moinhos, 2018) e Cidade Santa (Folheando, 2020), tem contos publicados em várias coletâneas. Primeiro lugar no 2º Concurso Literário do IFPB (2020) e no III Concurso Cuéntame un cuento, da Universidade de Salamanca (2019); premiado no concurso Repertório de Utopias do Itaú Cultural (2019); como coautor na primeira edição do Prêmio literário 200 anos da Independência do Ministério da Cultura (2018) e autor na segunda edição (2019).

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