Conto de Adriano B. Espíndola Santos

Texto de Adriano B. Espíndola Santos

A noite tranquila

Ao acordar, Luciana olhou o último quadro pintado por seu pai – e ficou absorta com a novidade: as luzes, antes vivas, tornaram-se embaçadas. Não quis fazer alarde. Demorou-se a sair da cama, pensativa. Incrédula que é, não admitia ser algum sinal sobrenatural ou coisa que o valha. Logo conjeturou a mudança do clima – pois que, na verdade, nos dias presentes, o fogo estava para escaldar os miolos. No mesmo instante, foi raptada por uma emoção incógnita, como se ela houvesse, no meio da noite, sem saber, operado aquelas mudanças, que para muitos poderia ser imperceptível.

Longos minutos se passaram, em elucubrações sórdidas, até se dirigir ao banheiro. Lá, mais outras estranhas novidades: as escovas de cabelo e de dente estavam embaralhadas; a tigela, na qual guardava alguns penduricalhos, como brincos, correntes e pingentes, também estavam bagunçadas na pia; o móvel, logo à frente, com um generoso espalho, quedava entreaberto, de onde saíam, desconformes, cotonetes, algodões e líquidos de perfume e cremes.

Não pôde mais conter o espanto de estar ali, só, e resolveu, o mais rapidamente possível, se arrumar e ir ao trabalho. Na entrada, fora recepcionada por Diógenes, o porteiro, que, quase sempre, a recebia com sorrisos; dessa feita, com a cara mais amarrada, não se deu ao trabalho de, sequer, olhar para o lado, e largou a seca resposta: “Bom dia”. Luciana percebeu que o dia não era para amigos e conversas fiadas. O bom café, que esperava encontrar em sua mesa, não estava lá; Diana, a fiel amiga, segundo relatos furtivos, estaria gravemente enferma. Contentou-se, somente, a colher um pouco do café que era servido ao público, forte e amargo.

Na mesa, nenhuma diferença; os papéis atulhavam, inclusive, o olhar. De seu posto, mirou, de esguelha, Pompeia, uma figura de parcas palavras, enjoada pelos anos que servia ao Estado, sem obter nada em troca, como costumava dizer; cavilosa e magoada. Em seu gabinete, hermeticamente fechado, vislumbrava-se um calendário, no qual Pompeia apontava, rigorosa, os dias que lhe restavam naquela repartição. No começo do presente mês, ela voltara da chefia com os olhos vermelhos de sangue, de tanto chorar, resmungando que teriam aumentado, arbitrários, oito meses em suas contas; “aumentaram, na cara dura, sem justificativas, dizendo que precisava cumprir isso tudo, para ganhar a aposentadoria”. Como se pode inferir, Pompeia batia o ponto e não fazia mais nada; não havia razão ou prazer para tal. Se chegasse uma mãe aflita, perguntando alguma informação sobre o processo do filho preso – como citavam as desvalidas e desesperadas, que seria objeto de prisão injusta –, Pompeia virava a cabeça e dizia, com voz cavernosa, que fosse procurar o defensor; e só.

Júlia, a estagiária, uma menina competente, cheia de gás, era o seu porto seguro. Para completar o espanto, conforme declarara Décio, a garotinha teria pedido para sair, porque não aguentava tanta pressão. “Não sei por que colocam esses pirralhos para trabalhar; já sabem que vamos ficar na mão, mais cedo ou mais tarde. Por mim, se fosse diretor, contrataria pessoas necessitadas, não esses filhinhos de papai, que vêm para atrapalhar os serviços”. Luciana, na única conversa séria que tiveram, mandou o homem se danar com o seu machismo; pelo que foi logo reprendida, com a alegação de mimimi e frescura. Com Décio, o homem que ajeitava tudo por baixo dos panos, não havia papo. Entre eles, um oco intransponível de medo e repugnância.

O diretor Vicente era um homem sisudo, do qual Luciana se limitava a receber ordens, no mais das vezes absurdas, como engavetar processos; rasgar despachos; e, o pior, não atender às demandas do juiz. Falavam, à boca miúda, que estava mancomunado com os sujeitões do poder; que o juiz, homem de bastante idade, não mandava em nada; que era preferível obedecer às ordens de escabroso diretor.

Nesses cinco anos de secretaria, Luciana havia visto dez vezes, ou um pouco mais, o senhor juiz. Estava, como muitos ali, exausto dos trabalhos sem meios, sem papéis, sem organização; sem condições de mudar. Era bem provável que ele, diante de tanta confusão, num clima péssimo para o trabalho, preferisse se ver livre das agressões; ou fazer vista grossa para melhor passar. Um dia, Vicente deixou escapar que o senhor juiz, por mais que fosse um homem de princípios, há muito teve de se sujeitar aos mandos dos superiores; por isso, estava indiretamente vinculado a trambiques de várias ordens. Mesmo não acreditando em uma palavra que saía da boca do perigoso diretor, Luciana sentia dores tremendas, supondo que, sem querer, poderia, também, estar ligada a malfeitos. E Vicente se aproveitava disso.

Noutra manhã, quando completara cinco anos e seis meses de serviços prestados à secretaria, Luciana recebeu ordens do diretor para preparar uma decisão, de mínimas e objetivas linhas, em que se decretava a soltura de um sujeito de alta periculosidade. Era o Bronco, chefe de facção. O diretor, tranquilo, certificava não haver indícios de crime – havendo, contudo, provas incontroversas. Luciana se recusou veementemente e foi, de imediato, atacada pelo diretor, sob pena de sofrer um grave processo administrativo e perder a sua função.

Luciana se enxergava pequena diante do poderio do sujeito; tinha receio de perder o cargo, ainda que logrado através de provas públicas, com aprovação máxima. Desde a morte do pai, seu único esteio, via-se sem eira nem beira no mundo. E, para piorar, coincidentemente, desde então, era demandada a preparar as arbitrariedades, todas desconformes à lei. Pensou em denunciar o diretor ao órgão competente, pelo que foi abafada por ninguém menos que Pompeia, acostumada e igualmente perseguida, sem esboçar sentimento: “Não dá em nada… Mas, se precisar, testemunho em sua defesa” – falava contida, com a mão sobre a boca, para não ser percebida. Luciana compreendia que estava só; mas, tendo gravado a conversa pelo celular, seria um carta na manga para porventura empreender uma medida mais incisiva.

Havia, também, uma faz-tudo, chamada Vilânia. No dito popular, uma pomba sem fel. Era doente dos nervos e vivia de atestado. Concursada como Luciana, com mais anos de serviços públicos, não esperava alguma bomba estourar e, logo, pedia licença. Senão, caía no choro convulsivo, um teatro à parte, e Vicente era obrigado a dispensá-la, para não chamar a atenção das outras secretarias.

 Sabendo da astúcia de Vilânia, em outra oportunidade, das mais cabeludas, Luciana chorou como criança, esperneou, e Vicente fez sugestão de lhe dar um severo “corretivo”. Atracou-se no pé da mesa e começou a chutá-lo, com toda força. O homem não teve reação – vociferando, no entanto, que era uma desgraça trabalhar com mulher; que mulher só prestava para estar em casa, para servir aos filhos e ao marido. O diretor do fórum, ouvindo o estardalhaço, entrou de súbito no recinto, determinando que o diretor da secretaria o acompanhasse. Resultado: sem ter a dimensão clara do que poderia ocorrer, Luciana foi a responsável pela mudança de diretor. Nos dias que se seguiram ao acontecimento, reinou a paz. Até o juiz, que nunca aparecia, voltou a frequentar o seu lugar. Houve mais respeito e distinção ao trabalho de Luciana e dos colegas; que, em razão disso, fora alçada ao cargo de diretora da Vara.

Dr. Nocrato, homem de valor, só faltou lhe agradecer de joelhos pela bravura. Pompeia, por mais que contasse os dias para se ver livre dos pesadelos que acumulou ali, também, com discretos sorrisos, lhe agradecia. Luciana arranjou meios para abrir um edital simplificado para a contratação de novos estagiários – dois, para ser preciso –, ante a necessidade.

Pintura de João Timane
Pintura de João Timane

A despeito das melhorias visíveis, intuía que muita coisa estava fora de esquadro. Em seu diminuto apartamento, apareciam objetos suspeitos; avisos velados, como para lhe amedrontar. Ou seja, os ataques, depois da saída abrupta de Vicente, cresceram de maneira progressiva. Surtiam efeito, claro, e ela se via intranquila. Mas já descartara serem provenientes de forças sobrenaturais – Luiz, o pai de Luciana, não a colocaria em situação vexaminosa, desagradável; se viesse, seria por amor, e a confortaria em brandura.

Sem hesitar, recobrando os cacos de força, Luciana foi atrás de um chaveiro e mudou todas as fechaduras do apartamento. Porém, os atentados passaram a ser praticados em seu carro, deixando-a, por duas vezes, empancada na Avenida Treze de Maio, trajeto para o trabalho.

Apurou todas as investidas, com gravações e fotos; ainda, com os objetos guardados. Foi à delegacia mais próxima e entregou-as para averiguação. Com um mês, mais rápido do que supunha, chegaram ao agressor, exatamente quem a perturbava: Vicente e outros conhecidos criminosos do tráfico.

Apurou-se que Vicente se valia da posição de primo de um senador e executava as mais bárbaras atrocidades. Pelo delegado, Luciana soube que, por pouco, não estaria morta; o homem acumulava nas costas crimes de extorsão, abuso de poder; prevaricação, estelionato e homicídios.

A prisão definitiva fora decretada um ano depois. Nesse ínterim, Luciana era escoltada, dia e noite, por guardas da força especial do Estado. A noite mais tranquila, o sono dos justos, teve ocasião de acontecer nesse dia.

***

Adriano B. Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; e em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, ambos pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. Membro do Coletivo de Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.

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