O leito de Procustes

Ao devolver-me o original de um conto que eu mandara para apreciação, dizia-me há 29 anos um dos melhores estilistas que conheço: «Aconselho-o a trabalhar mais com base numa linguagem menos linear».

A frase obrigou-me à meditação, acabando eu por me interrogar a mim mesmo sobre quem, julgava ele, seriam os utentes da minha humilde prosa, os destinatários da possível mensagem que ela veiculasse.

Em seguida procurei outro conhecido que o reputava idóneu, e entreguei-lhe o trabalho pedindo o seu juízo crítico. Restituiu-me com esta anotação: – «Porquê não usar uma linguagem mais simples »?

Era o caso do «O velho, O rapaz e o burro». Mas o simbolismo que me veio imediatamente à cabeça foi do leito à Procustes: este deitava nele as suas vítimas. Se o excediam em tamanho, cortava-lhes as pernas antes de as matar; se eram demasiado pequenas esticava-lhas até rebentarem…

Esta posição do aspirante a escritor. Na maré magnum do mundo da escrita, sem tirocínio adequado (sem nenhuma ajuda aliás) produzindo sob impulsos espontâneos para dar vazão àquilo que povoa o seu mundo interior, ele é passível de variada visão crítica: a dos que dele esperam um estilo grandíloquo ressumando fioritura; a dos que anseiam pelo aticismo ou pelo verbo fluente e leve; a dos que preferem os temas profundos que obrigam a reflexão; a daqueles para quem a literatura deve ser uma actividade lúdica, e outras mais.

 Gostos. Para uns a perfeição reside, pois, no apuramento formal; tal, para eles, o sol da escrita; e tudo quanto não seja burilado será por esses considerado descolorido, insípido valendo apenas como meio de malbaratar tempo e paciência. Para outros, porém, a fioritura não passará de excrescência, bugiganga, ganga. Na simplicidade do linguajar estará o segredo da comunicação. Outros deter-se-ão quase exclusivamente no conteúdo vendo nele o cerne da criatividade, enquanto outros ainda exigirão a palavra precisa para o tema apropriado.

Isto coloca o principiante numa camisa de onze varas, entre vários grupos de descontentes, emparedado, asfixiado, suportando diatribes vindas de todos os lados.

Que fazer? Aceitar de mão beijada o papel de bobo da festa?

Nesta fase da sua carreira há quem pretenda transformar o seu trabalho em simples mercadoria; deve então satisfazer encomendas, namorar praças. Talvez lhe entreguem motes para glosar à século XVII. Não será então um homem livre e pela pena de Lénin receberá a crítica de que a sua actividade é «uma prostituição ».[i]

Exigem-lhe aticismo esquecidos de que mesmo em Ática, aquele era apanágio de muitos raros. Pede-lhe a exploração de desvios semânticos para uma descodificação mais rica e o utilização da tropologia, sem se lembrarem de que a estilística foi sempre uma disciplina ausente nas escolas da terra.

A nossa estagnação tem, entre outras, esta explicação: quando o colonizado mostrava tineta para a escrita provocava a hostilidade do colono. Se ao cultura das artes plásticas se dava a mão, vendo-se no seu labor uma evolução da pintura rupestre ou um prolongamento da escultura em terracota (artes primitivas), a aventura na ficção literária era já uma violação porque o colonizador – situacionista, claro – ligava à literatura do colonizado estado de fermentação política.

Em parte não se enganava. Mas ele, colono, dispunha de um processo radical de curar o potencial criador. Não lhe cortava os dedos da dextra, como do outro lado do Atlântico o fizera certo «senhor» a um ascendente de Percy  Julian, mas colocava-o «no seu lugar», isto é, perseguia-o e marginaliza-o procurando impor entre o aspirante a escritor e os liberais democratas uma barreira para que estes lhe não estendessem a mão. A insistência na pretensão revelaria, assim, «tendências comunistas», «espírito de agitador» e mesmo « insulto à soberania».

Por isso, enquanto para o artista plástico era possível existir o mecenato, o potencial escritor tinha como probabilidade um policia, um administrativo, um carcereiro e até um juiz ou um pide. E, evidentemente, um membro da «intelligentsia oficiosa».

Sim, Lourenço Marques tinha uma intelligentsia bicéfala.

Dum lado, doentiamente vigilantes instalavam-se os intelectuais patrioteiros. Menos dotados talvez mas melhor escudados politicamente, constituíam a guarda avançada do colonialismo e consideravam a criatividade literária seu apanágio exclusivo. A vocação, nesse tempo, estaria ligada ao genes, aos cromossomas. Talvez a avaliassem a compasso esquadro.

Isto porque a mentalidade burguesa privilegiava a literatura no campo das artes. Era actividade demasiado ambiciosas para a gente de cor…

O outro grupo, mais numeroso (mas amordaçado pela censura) dizia que a estagnação intelectual do colonizado resultava da situação colonial e que, esta não seria permanente, futuramente se iriam revelar valores nativos. Mas não podia prestar ao colonizado qualquer ajuda de natureza intelectual uma vez que se brandia contra o grupo ou apodo de fomentador do comunismo, do nacionalismo africano, de agitação.

Mas o raciocínio do grupo patrioteiro era o mesmo dos outros situacionistas. Como o grupo, qualquer membro da comunidade colonizadora, incluindo os poor white, negava ao colonizado, capacidade criadora.

Quando algum colonizado mesmo de qualquer outro país que não Portugal, mostrava algum talento, os ânimos exacerbavam-se e o escritor era objecto de insultos. Nos anos 30, por exemplo, quando, respondendo a uma pergunta sobre uma personagem do Batoula, René Maran elucidou o entrevistador, um escritor sem grande nome, fez este comentário: -«a honra não foi levada em sangue, mas em catinga. Cheira mal é o que pôde arranjar»[ii].

Há algo mais sintomático? Como esperar, nestas circunstâncias, estímulo ou simples compreensão?

Os próprios críticos, além das suas limitações peculiares, podem agir emocionalmente. Um homem de invulgar cultura, que usava o pseudónimo de Methelo, chamou de «superstição» o cepticismo manifestado por Rui de Noronha diante da sepultura (porque não sabia se a vida acabava ali). No entanto este tema foi explorado por grande número de poetas sem merecer tão negativa qualificação. [iii]

Isto coloca de sobreaviso qualquer principiante optimista. Deve contar com dificuldades, quase abandono até que um dia aqueles que vingaram lhe indiquem o «abre-te Sesamo» com o que poderá abrir os umbrais dessa gruta de Aly Babá que é do domínio da arte de escrever.

Este Procustes não terá então o seu Teseu?

Felizmente que tudo nos mostra que em curto futuro o principiante não se sentirá amarrado ao leito de Procustes por haver quem, por dever de ofício, deva instilar na juventude a heurística necessária para uma criatividade literária de nível.


[i] In Obras Completas.

[ii] In Para as Vossas Orelhas Mocas, de Câmara Lima.

[iii] In Itinerário.

Texto publicado na III edição da Revista Charrua, em Outubro de 1984

Breve Biografia

Aníbal Henrique Aleluía foi ficcionista e jornalista moçambicano. Nasceu em 1926 em Inhambane. Faleceu em 1993, em Maputo. Exerceu diversas profissões, desde aprendiz de caixeiro, funcionário administrativo, enfermeiro, solicitador de entre várias outras. Colaborou no Itinerário, O Brado Africano, A Voz de Moçambique, Tempo, Vértice.

Aníbal Aleluia publicou em 1987 MBELELE E OUTROS CONTOS, O GAJO E OS OUTROS, e em edição póstuma CONTOS FANTÁSTICOS.

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