CARTA A CELSO MUIANGA: ou o que ele ficou por aprender.

Escrito por Nelson Lineu

Meu confrade, Celso Muianga, espero que estejas a gozar de boa saúde e que ao leres as minhas palavras não as encarre como reposta a uma crítica literária ou ensaio sobre o meu livro, para mim é matéria para silêncio, mas sim o motivo que anunciaste ao me escreveres. Foi com muito gosto que recebi a tua ligação pedindo meu email, para enviar-me a tua opinião sobre o meu ebook de crónicas. A alegria veio pelo facto de, no dia anterior, ter comentado com um amigo que um dos maiores males que se comete é falar de aspectos negativos de alguém ou de obras suas pelas costas, pois não o ajudam a evoluir.

O outro aspecto que mereceu a minha humilde atenção foi quando sublinhaste que não publicarias a carta em uma revista, jornais ou facebook, porquanto era somente para mim. O teu sublime gesto não só me conforta pelo engenho da arte que se me desperta por isso, como, naturalmente, te coloca, se a isso se chama generosidade da minha parte, na lista das melhores pessoas que me legaram, com sutil diligência, os seus conselhos, com os quais vou edificando o meu percurso literário – como Anselmo Alós, Fernanda Ángius, Francisco Noa, António Cabrita, Ungulani Ba Ka Khossa e Teresa Noronha.

Recebi a primeira versão da tua carta e agradeci-te pelo momento ímpar, embora ainda tenha algumas reservas sobre os verdadeiros mistérios que legitimam a sua génese. E, no final do dia, quando me ligaste, mal conversámos por conta do ruído que se fazia no lugar onde eu estava, mas deu para perceber que mudaste de ideia e querias publicar o texto – a chamada era para pedir a minha autorização. A minha reposta foi “não”; não sei se percebeste! Neguei porque calculava que, se o texto era para mim, já tinha chegado ao seu devido destinatário e cabia-me a mim dar o seguimento à tua boa acção. Ademais, achava que, ao publicares, entretanto, surgiria um debate improfícuo (inclusive lançarmo-nos na fogueira de vaidades), que nos desviaria do que eu achava ser o propósito da tua carta: a melhoria do meu desempenho como escritor.

Na mesma noite, deixei alguns minutos esvaziarem o meu copo vazio de sossego e, ao cabo desse instante, cogitei sobre a (tua) necessidade de publicares a carta; aliás, conjecturei várias hipóteses. E reli o texto, e li-o de novo, e achei-o belo mais uma vez, e disse para mim mesmo que seria uma terrível iniquidade amarrar aquele texto a um lugar silenciosamente solitário, como o destino que teria dentro do meu email trancadocomsenhas cibernéticas. Seria, de facto, como alguém comprar um facto, uns sapatos e perfumes novos e deliciosamente flagrantes, mas para usá-los, apenas, no seu quarto.

Outra hipótese que me veio é que, além de mim, o escrito poderia e/ou serviria igualmente para outros jovens – como me explicaste no dia seguinte; mas, mesmo assim, eu não me senti nada convencido, até porque não estava a ser consultado: era uma intimação – tal provou o facto dos meus comentários e sugestões não terem influenciado em nada na segunda versão da carta. 

Com a questão de a publicação da carta ser uma certeza, perguntei-me se devia reagir em resposta. Contei ao meu amigo Japone Arijuane, quem – ao seu jeito, mesmo sem conhecer o conteúdo da carta – sugeriu que não respondesse. Enfim, penso que a negação do Japone tenha a ver com uma regra que criámos nas nossas rodas de leitura, no kuphaluxa, segundo a qual: se um texto precisa de ser explicado, o problema não está com quem lê. É daí que vem a necessidade de responder-te, não para defender-me da tua opinião sobre o livro, mas para me pronunciar sobre a maneira vaga com que apresentas a tua inquietação e recomendações…

O teu posicionamento é como daqueles que dizem ao aprendiz de escrita que ele deve ler, e sem apontar “o que ler?” e “como ler?”. Quanto ao “que ler?”, nos primeiros anos do meu percurso, assisti a uma palestra do professor Francisco Noa, em que de forma pedagógica, ele recomendou aos jovens que queriam iniciar-se na escrita a ler os clássicos. Aquele conselho teve um grande impacto em mim. No final, pedi ao professor que não lesse a colectânea de poemas que lhe pedira, há alguns dias, que apreciasse; senti que devia obedecer, à risca, a recomendação.

Quanto ao “como ler?”, o livro de Francine Prose “Para ler como um escritor”, mudou muito a minha relação com a leitura, e demostrou que havia uma disciplina por trás das leituras, mais do que o prazer que os textos proporcionam; a magia para um iniciante da escrita era descobrir de que instrumentos os escritores se servem para produzir os efeitos que desejam ao leitor.

A professora Fernanda Angius, apercebendo-se do meu potencial como poeta, disse que devia parar um pouco com a prosa e dedicar-me à poesia. Com mais trabalho, adquiriria um domínio das palavras e sentidos que seriam fundamentais para alimentar o meu exercício ficcional.

António Cabrita, apercebendo-se de como eu estava a deixar a vaidade conduzir o meu fazer e pensar a literatura, chamou-me a atenção e forneceu-me uma lista de livros, ainda na sentenciou de que só devia pensar em publicar cinco anos depois (o meu primeiro livro foi publicado em 2014 e o segundo, em 2019). Li os poetas que ele solicitou e, nos primeiros momentos que me pus a escrever o meu segundo livro, mostrei-lhe o resultado; ele fez algumas correcções e críticas, assim fui melhorando os textos.

Ungulane Ba Ka Khossa deu-se conta de que eu estava a confundir as coisas, tendo-me chamado a atenção para o facto de que a loucura não devia estar precisamente na pessoa; mas, sim, nos textos. Isso fez uma grande diferença em mim, que ele (creio) nem tem a noção do quanto me colocou em inevitável metamorfose.

Há bem pouco tempo, pedi à Teresa Noronha que apreciasse um conto meu, e ela apontou o que tinha o texto de positivo e, no final, disse-me que tanto o Conflito quanto a Resolução não convenciam. Isso fez com que me dedicasse a ler sobre o assunto, livros sobre roteiro como “Manual Do Roteiro” de Syd Field, e livros sobre a construção de narrativas como “Escrever Ficção”, de Luís António de Assis Brasil foram fundamentais para perceber o alcance das palavras dela. O resultado foi imediatamente evidente: revirei todos os contos que tinha produzido e percebi que o problema era transversal, quando acertava nos textos era mais por intuição do que por conhecimento. Imediatamente, quando cheguei a está conclusão, pedi ao Léo Cote, que tem editado os meus textos, que parasse com o trabalho que estava a fazer nos meus contos, porque precisava de retrabalhá-los.

Todas as pessoas que alistei têm, em comum, uma questão que me parece indiscutivelmente relevante: primeiro, o facto de identificarem um problema (que era como nuvens para os meus textos) e, segundo, o facto de apresentarem caminhos alternativos de saída – o que não vi na tua carta.

Lembro-me que depois de lê-la, na primeira versão, terei sugerido que apresentasses os aspectos positivos e negativos; inclusive, dispus-me a trabalharmos juntos. Além de citares os nossos cronistas, seria/teria sido mais proveitoso – para mim e para outros escritores emergentes – tivesses apresentado estratégias de como eles trabalharam os aspectos que te parecem deixar a desejar, ou menos bons, ou desajeitados nas minhas crónicas.

Quando li o exemplo que trouxeste de Saramago, constatei que, mais do que a qualidade dos meus textos, a tua principal inquietação foi o facto de um jovem publicar um livro de crónicas. Este factor foi camuflado pela questão da pressa em publicar, que, na forma como apresentas, considero isento de fundamentos, esses que me permitiriam esmerar o meu labor literário à luz da crítica que me não insinuaste com pormenores.

Caríssimo, que fique claro que, não estou a favor de publicar por publicar. Lembras-te da primeira oficina de escrita da Fundação Fernando Leite Couto em 2016? Mia dirigiu a oficina de poesia e Agualusa, a de contos. Três dos jovens que se destacaram na poesia publicaram pela vossa chancela. Eu fui o único que mereceu elogio na oficina de conto, mas não me envaideci e nem bati porta para prostrar pela publicação da minha colectânea de contos que estava na gaveta, mesmo com a tua solicitação, disse várias vezes que queria aprender e praticar, até hoje.  

Quanto ao meu livro de crónicas, estou ciente de que há livros em que os autores se saem bem e outros que ficam aquém, por isso, não comento. O que quis apelar é que esses conselhos não devessem partir de constatações abstractas, principalmente quando temos o material em mãos, para não sermos acusados, também, de ter pressa ou, pior, de sermos ociosos.

Além daquela primeira oficina de escrita, participei e tomei conhecimento de outras na FFLC, a sensação com que fico, então, é que se tem dado conta do nome dos escritores para orientarem, e não os conhecimentos metodológicos em si, para tal. Deste modo, elas têm acontecido como muitas coisas no país, só para cumprir agendas. Tenho, portanto, a certeza de que, com a tua experiência, um pouco mais de pesquisa e empenho, farias melhor. Quiçá publicasses em livros, teríamos muito a ganhar e darias um contributo mais digno de se referir do que com a tua carta.

Em suma, para terminar, espero que a tua carta não tenha sido como um dos cenários que vejo todos os dias nas redes sociais: um Fulano que posta foto com um Beltrano, felicitando-o ou solidarizando-se com a situação, para mostrarem aquele momento apenas, e não necessariamente por aquilo que os liga.

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