Noite de Lua cheia

0
477

Ao Edson, meu amigo, que perdeu a vida ao 26 anos, em Janeiro deste ano. E a Ika, a boneca que ele nos deixou.

A chuva recente trouxe os sapos para mais perto das casas. Os sapos conversam um choro nas machambas dos vizinhos do quintal da frente, depois da ruela de terra batida e muito entulho. De noite disputam o espaço sonoro com os prantos e as gargalhadas das crianças da vizinhança.

Um Opel de motor cansado a rosnar, estacionou nas proximidades da casa. O tipo do alemão lá ligou música dele, aumentou o volume e buzinou.

Edson está deitado de barriga na lua. As nuvens dispersam-se, a lua revela os desenhos. O Edson, sorridente, céu limpo, fixa o olhar, enigmático.

Na casa:

– Roubaram aquele dog que eu queria mandar roubar – lamenta o Bro.

– What?

– Yah, Bro. Mandava um breinado aí, me dava a quinha aquele dog. É de raça. O dono estava a me cobrar 2 paus. O gajo que comprou nem vai saber cuidar. Eu até comprei aquela bacia, viste? Juntei um txi para ração. A bolada vai bem. Ia dar-lhe um banho ao chegar com água de colónia.

Desaprova. Está sentado na sala de uma casa com as obras por concluir. Senta-se sob um banco improvisado da base de uma latinha de metal de uns 3/4 litros (50 cm, aproximadamente) embutida de cimento. Volta-se para a lua e encontra diante de si o desenho de uma mulher jovem e uma menina de capuchinho ao lado de uma mesa e uma luz que vem da porta nos fundos, nas costas da jovem sem rosto.

Quando posiciona a cabeça mais à direita, vê uma cama no lugar da mesa. A voltar a posição inicial, a mesa mostra-se recheada. Escapam os semblantes das duas. Escapa a jovem e a criança que não mudam de posição. Não há estrela próximas, as nuvens cinzentas aproximam-se, formam-se em cabeça de leão e uma juba avantajada, robusta. Uma presença tal que lembra o Simba já crescido, este de alta resolução.

– Bro, estás a ver as nuvens a fecharem-se? Parece um olho, nem? Nada, agora parece um jogador de futebol.

– Sim. Parece que está a ser segurado.

– Ele está a celebrar.

– Yah, vendo bem, sim.

– Parece que marcou um golo.

As nuvens passam, a lua vai se perdendo nas costas delas. A noite é quase cinzenta nesse instante.

“Edson, Edson. Os recibos continuam entre os livros”. Não deu para falar. A lua foi esquinada. A noite é cinzenta. O relógio estragou-se, ponteiro estagnou-se às 9.24. Finalmente, está certo.

Repentinamente, o Opel volta a rosnar, a música volta alta. O Opel vai se distanciando a tocar Kwiri, do Roberto Chitsondzo na sequência de Boa Vibe do AC.

Artigo anteriorOs artistas negros começam a realizar exposições (Restauro II)
Próximo artigoSpotify a caminho de Moçambique
É licenciado em Jornalismo, pela ESJ. Tem interesse de pesquisa no campo das artes, identidade e cultura, tendo já publicado no país e em Portugal os artigos “Ingredientes do cocktail de uma revolução estética” e “José Craveirinha e o Renascimento Negro de Harlem”. É membro da plataforma Mbenga Artes e Reflexões, desde 2014, foi jornalista na página cultural do Jornal Notícias (2016-2020) e um dos apresentadores do programa Conversas ao Meio Dia, docente de Jornalismo. Durante a formação foi monitor do Msc Isaías Fuel nas cadeiras de Jornalismo Especializado e Teorias da Comunicação. Na adolescência fez rádio, tendo sido apresentador do programa Mundo Sem Segredos, no Emissor Provincial da Rádio Moçambique de Inhambane. Fez um estágio na secção de cultura da RTP em Lisboa sob coordenação de Teresa Nicolau. Além de matérias jornalísticas, tem assinado crónicas, crítica literária, alguma dispersa de cinema e música. Escreve contos. Foi Gestor de Comunicação da Fundação Fernando Leite Couto. E actualmente, é Gestor Cultural do Centro Cultural Moçambicano-Alemão

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here