ENTREVISTA AO FERNANDO ABSALÃO CHAÚQUE SOBRE “ÂNCORA NO VENTRE DO TEMPO’’

Entrevistado por Alerto Bia

A pedido dos netos, um ancião navega nas rédeas dos tempos passados, revolve episódios que presenciou quando trabalhava em Lufa-lufa, um bairro banhado de mistérios e insólitos surreais. Neste lugar há mortos que ressuscitam; há chaminés ambulantes, subalternização da mulher, infidelidade, chove peixe e os feiticeiros são também enfeitiçados. Contudo, a memória é o centro de erupção, a âncora que mantém as lembranças cravadas no linguajar metafórico e imagético que se estende no ventre de tudo que é aqui narrado pelo ex-fotógrafo.

Estreias com uma distinção que te valeu uma tiragem de 1000 exemplares. Que significado isto tem para o teu labor literário?

É o brotar da semente que há anos já estava lançada, porém ainda esperava propícias condições para rasgar as entranhas da terra. É a ignição de um sonho. Nunca imaginara que teria uma estreia igual a esta. É um bom começo, acho. Agora, o labor literário nunca é uma constante, há muita coisa que o influencia. E esta estreia é também um bom catalisador para a minha oficina.

 Depois do prémio, o que mudou? Sentes alguma pressão para escrever mais e melhor do que até ali em “âncora no ventre do tempo”?

A questão não é pressão para escrever mais e melhor. Eu acho que todo artista tende a ser meio insaciável, exigente e perfeccionista para consigo mesmo e, logicamente, para com o seu trabalho como criador de qualquer forma de arte; ele credita que se vai superando e galgando outros degraus à cada obra manufacturada.  Estou nesta luta: trazer novas abordagens, visões, técnicas… no que tenho escrito. Porém, deixo tudo para fermentar nas asas do tempo.

Ahhhhh… o prémio tem um impacto enorme na minha vida assim como no meu labor. É algo que nunca se apagará. “Revelou-me” na arena literária moçambicana. Se não tivesse vencido este concurso literário talvez ainda não teria nada publicado… tu sabes como é o sistema aqui no nosso país…

A fotografia serve-nos desta ferramenta de flagrar o instante e eterniza-lo. E {toda} a literatura tem um quê de confessional. Conte-nos como foi que te surgiu a ideia de traduzir os retratos em palavras. Por que “ancora no ventre do tempo’’? Houve algum objetivo por detrás de não revelar a identidade do ex-fotógrafo?

Sou apaixonado por várias formas de arte: música (já fiz RAP), pintura (às vezes pinto, ainda que de forma amadora), teatro (tenho um grupo teatral, sempre que possível actuamos por aí), literatura…; porém, a fotografia foi uma das primeiras coisas a afeiçoar-me conscientemente a ela. Isso por influência da minha mãe. Ela gosta muito de tirar fotos. Em casa há muitos álbuns de fotografias em família… inclusive muitas fotos minhas e dos meus irmãos desde os primeiros meses de vida, baptismo, aniversário…, e, sempre que estou com ela, especialmente quando estamos eu e os meus irmãos, ela nunca se esquece de ir buscar os álbuns e contar-nos as histórias por detrás daqueles retratos. Ou seja, ela usa aquelas fotos como um repositório de memórias. Sempre que vou visitá-la à despedida raramente se esquece de dizer: “Mano Nando, me tira uma foto… depois vais embora…”

Acho que foi por esta influência toda que surgiu (ainda que de forma inconsciente) a ideia do narrador deste livro.

“Âncora no Ventre do Tempo”  é uma metáfora para apresentar o leitmotiv que no livro transcorre todos os contos. A memória é uma âncora que mantém o nosso percurso estampado no ventre do mundo.

Não revelei a identidade do fotógrafo simplesmente para que, durante a leitura, cada leitor se sinta esse fotógrafo narrador do livro…

Em “âncora no ventre do tempo”, aludes à desconstrução e reconstrução de paradoxos com ainda forte exegese de mistérios e insólitos surreais. Tens alguma pretensão com a reinterpretação da realidade?

Acho pertinente esse exercício de desconstrução e reconstrução de paradoxos em cada um de nós e na sociedade. Ora, este é um livro de ficção, mas com os pés assentes à realidade moçambicana e africana.  Acho que só tem  45% de pura ficção. O resto são factos que têm acontecido na nossa sociedade e que têm gerado muitos questionamentos e discussões antropológicas e até filosóficas. Questionamentos em torno dos porquês e o impacto de algo acontecer ou ter acontecido de um certo modo e não de um outro. A nossa realidade é misteriosa e surreal, Alerto… olha para os lados… está claro isso!

Acha que a literatura para além do poder de transformar o mundo é uma porta para a presciência do futuro?

Penso que é importante pensar em torno dessa ideia “de futuro”, entretanto para mim é simplesmente uma ilusão… algo que muitas vezes só serve para nos manter cheios de esperança e coragem nas batalhas diárias. A literatura também é um pouco disso. Um telescópico em todos ângulos do tempo.

O labor literário é um processo muito complexo, sitiado no binómio escrever e apagar. Sentes-te satisfeito em “âncora no ventre do tempo”? Conseguiu o exorcismo?

Um pouco. No dia que me sentir completamente satisfeito com o que escrevo talvez deixarei de fazê-lo. Há sempre algo por apagar ou retificar num texto. E há ainda um step acima que queremos galgar, já disse isso. Acho que a pirâmide de Maslow serve também para o contexto dos artistas, mas no sentido de autossuperação…

Na verdade, a “Âncora” é apenas um fragmento de um projecto maior. Quando comecei a escrevê-lo, a ideia era ter um livro com mais contos… talvez o dobro ou o triplo dos que saíram neste, mas todos tendo como espaço-acção este bairro fictício, Lufa-lufa. Entretanto, quando vi o anúncio do concurso levei o que já tinha escrito e fui submeter, deu no que deu e hoje temos aqui a obra. Ainda há muita matéria, muitas notas para mais contos em Lufa-lufa. No futuro, talvez teremos mais “aventuras” neste bairro.

O que espera da “âncora no ventre do tempo” num país como este nosso (moçambique) onde mendigamos a venda e os níveis de leituras estão reservados a algum circuito?

Ser lido pelo menos por este dito circuito existente de leitores. E também chegar há mais gente nos distritos e outras províncias além de Maputo. Por isso, tenho ideia de fazer lançamentos em vários pontos do país como Manhiça (minha terra natal), Gaza, Inhambane e outros…

Qual é o patamar que quer (sonha) chegar com escopro da palavra?

O mais alto que a minha escrita me poder dar. Evito muito criar tantas expectativas. Gosto que as coisas aconteçam naturalmente e que a vida me surpreenda. O que sei é que continuo e continuarei a escrever.

Há sempre aqueles questionamentos que pedimos que alguém nos minta. Que te impulsiona a escrever? Quem são tuas referências?

Escrevo porque gosto. Agrada-me ver um texto a nascer. Uma minúscula ideia engordando-se. Quando comecei a escrever não pensava que um dia ganharia um prémio e lançaria um livro. Mesmo assim, escrevia.

E neste processo, gosto mais do produto final… o processo criativo é meio complicado e às vezes cansativo. Mas, quando coloco um ponto final num projecto sinto-me um deus.

E as referências? São tantas. Franz Kafka, João Paulo Borges Coelho, Mia Couto, Calane da Silva, António Lobo Antunes, Haruki Murakami, Pepetela…

Com que olhos vês a nova geração de escritores e poetas moçambicanos?

Com olhos optimistas. A “nova geração” é promissora. Há muita boa coisa por vir. Não duvide. Lembra da mini lista que Óscar Fanheiro publicou um dia e foi apedrejado? Pois! Vamos dar tempo ao tempo.

De antemão, muito grato pela concessão a entrevista!

04/02/2021

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