Um texto noticioso é incompleto, como qualquer outro (na verdade), para anunciar a partida de Calane da Silva, a quem qualquer adjectivo corre o risco de não caber.
Quando, depois de um início de ano negro, coberto de luto, recebemos pelas redes sociais uma foto tua hospitalizado, com a legenda a informar que andaste dois dias a procura de hospital, o alarme soou: como assim, não há cama para o Mestre? Mas é a realidade que hoje vivemos, lamentavelmente.
“A Cultura moçambicana perdeu um dos seus grandes nomes:Calane da Silva”, como lê-se na mensagem fúnebre da Fundação Fernando Leite Couto, da qual foste membro da Comissão de Honra.
Como dizia no primeiro parágrafo, este texto não é noticioso. E a tua morte não é o objecto. Escritores e intelectuais da tua estirpe são celebrados pela vida que viveste.
A tua passagem foi marcada por uma dinâmica apaixonada e fervorosa que vimos aplicada nas causas que abraçaste e deste luz.
Conheci-te nos livros de português do ensino geral, não me lembro a classe. Era através das aventuras do Tio Dinasse que me chegaste. Foi a percorrer a tua Malanga descrita no Xicandarinha na Lenha do mundo que entrei para a literatura, na adolescência.
Anos mais tarde, já jovem, na Academia, a fazer um trabalho de pesquisa sobre Jornalismo Cultural, surpreendi-me ao cruzar com a tua assinatura na Revista Tempo, numa edição da década 80, numa crítica a uma peça de teatro.
Se antes conheci o prosador e o poeta, naquela leitura revelavas-te um homem que tinha como causa o nosso Ser, que a arte tem o beneplácito de revelar, imaginar e inventar. Essa forma de estar transcende o texto e aí reside o escritor, o criador. Ou melhor (talvez) o leitor, o intérprete de um tempo e das suas gentes (cultura).
Vi-te, à distância (a.Cov) nas palestras, nos Saraus, nos concertos de TP50, sempre disponível e jovial, a declamar com a paixão fulminante de quem se concretizava naquele instante, cultuando a palavra. Vi-te dançar marrabenta no CCBM, no CCFM. Conversámos alguns instantes depois de duas ou três entrevistas. Vi-te humano.
Em 2019, assisti a Homenagem que a Feira do Livro de Maputo te endereçou, no Jardim Tunduro, a cidade a reconhecer-te, colocar-te no panteão que te é justo e merecido, de um cidadão ilustre vindo da Malanga, pensei: é a periferia a tomar o centro. É à margem a entrar no curso do rio, pois não era apenas o Calane da Silva a ser reconhecido, era o teu bairro periférico a chegar ao pódio desta urbe que amaste.
Naquela cerimónia vi o Tio Dinasse e recordei de uma resposta pendente, o que ele achou da escorraça do Nwacacana para edificar a ponte, do tipo São Francisco para alguns privilegiados?
No Festival Mafalala, no mesmo ano, na qual nos convocaste a preservar a memória, igualmente escapou-me a pergunta que ficará a ecoar comigo para sempre.
Aprendi a sonhar com livros, entre os quais, os teus.
A morte é uma certeza que ninguém está nunca preparado para lidar. Há sempre a expectativa de receber uma informação contrária quando se trata de alguém que muito prezamos.
As condolências parecem vazias para amparar. E é nessa condição que soubemos que o Mestre Calane da Silva já não está entre nós.
Escapam palavras para descrever o sentimento que me povoa neste instante.
Abraço-te Mestre Calane da Silva…