O poeta António

Por: Pedro Pereira Lopes

Era apenas poeta. Poeta António. O seu corpo era um modelo de cinjas de cigarro, um passado que não lhe tinha muita utilidade. O seu presente não incomodava. De resto, o futuro, a poesia, um disfarce de montra desavinda. Poeta António. Padre poeta. Uma vez por semana, ia ao clube de escritores e sentava-se à mesa reservada aos cultores do verbo; desarmava os seus papéis, tomava notas, folheava jornais e bebia, talvez, uma Fanta ou uma taça de vinho. Nunca tinha dinheiro. Dependia, sempre, dos outros poetas. Era da Geração 8 de Março, do grupo dos homens que tinham ajudado o país a gatinhar. Única lembrança. Era uma boa lembrança. De pé firme. A causa.

O poeta António era o poeta dos perdedores. Ele próprio, um andarilho, roupa desbotada e chinelos de banho: reutilizados. Um poeta veste-se de palavras. O poeta António falava com palavras que não existiam, verbos ficavam advérbios e versos choviam para desistir da conveniência. O poeta António era poeta sem livro.

Roubaram-me os textos. Escrevi 30 livros de poesia… Ladrões, ficaram-me com as obras. Disseram-me que fariam um livro, e nada, dizia com um ruído húmido nos olhos, azedo, depois acalmava-se. Era um poeta anónimo e triste. Não havia prova alguma dos seus textos. Se calhar, até, eles nunca tinham existido.

Numa tarde, na festa de natal do clube de escritores, meti-lhe outra vez a conversa dos livros. Desconfiado, disse-me:

Levei uma sova com uma pistola. O amor não serve o poeta, o poeta serve o amor. Cada qual por si, eu bebo em nome do povo. Brindámos ao novo ano e encolhi-me a um canto, para anotar as suas frases no telemóvel. Ele tinha o prato cheio. Comia com gosto, tranquilo, o terceiro prato.

O poeta António morreu numa tarde. Não houve anúncio na página de necrologia dos jornais. Não houve livro póstumo. E escreveu 30 livros de poesia. Era poeta dos perdedores. Poeta António.

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