Hemingway, o cão de guarda

Por: Pedro Pereira Lopes

O Hemingway era um bom cão de guarda. Desde que era pequeno que o rafeiro ficara sempre preso no quintal, daí ser muito solitário. As únicas vezes em que ele atravessava o portão de acesso à casa era quando o seu dono ou o segurança fazia correr a porta de ferro para tirar ou meter o carro. E como o cão de Pavlov, Hemingway retornava, logo que ouvia o portão chiar.

Da noite para dia, o bairro ficou infestado de corvos indianos e o cão passou a ter alguma companhia. Os corvos, sempre esfomeados, visitavam o quintal por causa de um pé de papaia. Mas elas não amadureciam todos os dias. Então as aves passaram a comer, sorrateiras, a ração que sobrava das refeições do Hemingway. Quando ele se apercebia do embuste, dava-lhes logo corrida e elas saiam a voar.

Cansadas da trabalheira que tinham para comer, o corvo que chefiava o bando teve uma ideia. E foi a ave para o Hemingway:

Então, rafeiro, não conheces o mundo, não é?

O que é o mundo, perguntou Hemingway.

O mundo é o mundo, ora essa. O mundo é tudo aquilo que existe para além do teu quintal. Já saíste por aí?

Saio até ao portão, até à casa que está ali, na frente, disse Hemingway, baixando as orelhas espevitadas e a cabeça, corado. É também mundo, não é? Mas os corvos indianos riram-se com gozo.

Até à vizinhança? Que triste condição a tua, meu amigo vira-lata. Olha, sabes quem somos? Somos corvos da Índia, viemos do outro lado do oceano.

O que é o oceano?

Oceano é um mar enorme, ora essa. São águas em grandes quantidades.

Como a chuva?

Não, disse o corvo que chefiava o bando. As outras aves riram-se de novo. Tu és um animal ignorante, jovem vira-lata. Façamos um acordo. Em troca de uma porção do eu alimento diário, conhecerás o mundo pelos nossos olhos. Tens sempre muita ração e uma porçãozinha não te fará falta.

E tu me prometes o mundo? E descrição de lugares? Aventuras? E histórias? Quis saber Hemingway, desconfiado mas entusiasmado.

O corvo não respondeu, deu-lhe a asa e selou o acordo. A partir daquele dia, Hemingway guardava sempre, um pouco da sua comida, para os corvos. E estes ficavam durante horas a confabular. Nas noites, o rafeiro sonhava em poder voar, não em ser corvo, mas em poder sair por aí, conhecer o mundo depois do portão de ferro, ora essa.

No dia primeiro de Janeiro, o bando de corvos indianos não encontrou Hemingway no quintal. A tigela estava vazia e, até o começo da noite, não havia rastos do cão de guarda. Aconteceu o mesmo no dia seguinte. E no outro também. E no outro. Durante a semana inteira.

Hemingway tinha ido embora. Tinha ido explorar o mundo, ora essa.

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