VIAGEM NA POESIA DE EDUARDO WHITE (Conclusão)

em mim não ambiciono nada em definitivo se não a magia de viajar   Eduardo White    

De Ana Mafalda Leite

Que tipo de narrativa e que tipo de narração de viagem se escande na
poesia de White, a partir do seu terceiro livro, Poemas da Ciência de Voar e da Engenharia de ser Ave?

Comecemos por afirmar que a sua prosa poética tende à narração poética ou narrativa poética, à maneira de O Amor Louco de André Breton, ou de Os Passeios de Um Sonhador Solitário de Rousseau ou da Curta Viagem Sentimental de Italo Svevo ou ainda da Viagem ao Oriente de Gérard de Nerval. Neste conjunto de textos, da autoria de poetas, alia­‑se a discursividade narrativa à fragmentação poética e à descrição e reflexão metapoéticas.

Enquanto na narrativa comum a função referencial é o ponto forte, na narrativa poética predominam as funções emotiva e poética, esta última centrando­‑se na forma imprevista com que se vai construindo o texto. A narração é lenta, fragmentada, por vezes circular, vive do momento da escrita; o itinerário faz descobrir simultaneamente o segredo dos lugares e uma arte poética da escrita que os sugere, o seu objectivo é a fusão do real e do imaginário.

Os desvios, variações e insistências da narrativa poética criam um plano musical de ritmos, repetições e paralelismos, que substitui a lógica da sequência dos eventos, constituindo­‑se numa espécie de acção lírica. A tendência para a repetição por um lado, e por outro o uso de uma forma enunciativa da primeira pessoa, que retoma a palavra na sua dimensão estética e rítmica, deixando a escrita gerir­‑se por uma tensão maior do eixo substitutivo, cria as condições para este tipo de narração poética, cujo objectivo evenemencial se perde na deslocação imprevista da retórica emocional do sujeito.

Verificamos que o quarto livro do autor segue esta linha de escrita, Os Materiais do Amor seguido de O desafio à Tristeza (1996), composto por duas narrações poéticas, quase opostas, a primeira expansiva, e a segunda centrada no universo íntimo do poeta. Ambos os textos tratam do tema da viagem; o primeiro apresenta características próximas da ode panegírica, ou da carta, do diálogo; o segundo texto aproxima­‑se do género confessional e organiza­‑se numa espécie de monólogo dramático. Entre a euforia lírica do primeiro e a disforia singular do segundo, um mesmo processo: a viagem enquanto trama para ir ao encontro de si e do outro.

Sou ao Norte a minha Ilha, os sinais e as sedas que ali se trocaram e nessa beleza busco­‑te e para mim algum percurso, alguma linguagem submarina e pulsional, busco­‑te por entre as negras enroladas em suas capulanas arrepiadas, altas, magras, frágeis (MA, p. 24)

Este preenchimento do sujeito, em Os Materiais do amor, que se funde no ser amado, paisagem ideal, locus amoenus, projecção mítica da perfeição, expande­‑se num louvor descritivo dos espaços e dos sentidos, insufi­cientes para a ocupação do indescrítivel espaço amoroso. Contrariamente, O Desafio à Tristeza obriga a um esvaziamento do sujeito, a uma espécie de regressão da identidade:

Estou vazio, rigorosamente vazio dessa possibilidade tão feliz que é ser delicado, que é olhar para as coisas em beleza e senti­‑las desse modo (DT, p. 59) Lá fora é dia e eu sou noite dentro de mim (DT, p. 70)

A confissão deste último poema descreve uma descida ao interior do sujeito, em ritmo de desnudamento emocional, provocando uma reflexão simultânea sobre a inutilidade da vida e da poesia, sobre a passagem do tempo, a decadência física, o desgosto de ser. Esta espécie de narcisismo, às avessas, contrasta, em definitivo e quase oximoricamente, com o texto inicial, Os Materiais do Amor,

Estou triste. Mergulhado no inerte terror desse facto. Sou um pensamento que não tenho, sou uma compreensão que não sinto. Estou cansado de trazer este peso comigo, este abismo para onde me atiro. (DT, p. 64).

A predisposição confessional leva o sujeito, no final do texto a retomar a metáfora do gesto surrealista, afirmando um retorno a si, ao refazer o trajecto da escrita para a vida, a viagem pela palavra que restitui a sua identidade:

Contudo, se isto continuar, vou agarrar na palavra revólver e espetar um tiro na cabeça da tristeza. E então voltarei a sorrir (…) e a deitar­‑me fisicamente na paisagem dos versos que pressinto (…) Um tiro certeiro na cabeça da tristeza é tudo quanto basta para a emoção desse desafio devolver­‑me à realidade (DT, p. 80/1).

Os dois livros que são publicados na sequência deste, Janela Para Oriente (1999) e Dormir Com Deus e Um Navio na Língua (2001), retomam esta polaridade de trajectos. Janela Para Oriente concretiza a narração poética de viagem e a construção do sujeito como lugar, em movimento itinerante e nomádico, ou seja, a re­‑construção dos lugares culturais onde se reconhece.

Em mim não ambiciono nada em definitivo se não a magia de viajar (…) eu tenho visões por toda a parte, sou um corpo a abarrotar de impressões espantosas, de destinos fictícios e não duvido que verei janelas onde elas não existem (…) Todos os destinos são uma acção quando escrevo. (JO, p.)

Dormir com Deus e Um Navio na Língua,, por seu turno, faz da língua uma espécie de espaço desgeografizado e afirma a escrita como viagem, de sonho – “Uma língua sonha. Um navio é uma existência com essa rota” –, de exílio, como odisseia íntima, retomando, de algum modo, a interiorização espacial da procura de si, como acontece no poema Desafio à Tristeza.

A minha língua é um universo que respeito, um espaço onde me transfiguro (…) A minha língua. E nela um navio que é uma dádiva para que a minha alma seja uma realidade nas irrealidades todas que sonho (…) um frescor para a magia, uma sequência errante, um espaço desgeografizante. (…) entrego­‑me à visão que tenho de mim, perante o vidro do navio, na língua em que decifro uma paisagem que desconheço e por onde vagueio e para caminhos que para além deste ponto não sei bem se existem ou se são realizáveis (DCD, p. 11)

Neste último a escrita, e com ela a língua, são a viagem em arte poética de revelação, enquanto na obra anterior, Janela Para Oriente, vários rumos se entrecruzam nessa visitação de um oriente múltiplo, que convoca a geografia sensorial e cultural da Índia, Japão, Nepal, Tibete, Coreia, Tailândia, China, Filipinas, Suriname, até, finalmente, chegar ao Médio Oriente e daí olhar de novo África, depois Moçambique, e, por último, a casa, onde está a janela. A lírica irreverente desta trajectória do sujeito, parada e circumnavegantemente onírica, a partir da janela da sua casa, municia­‑se de conhecimento citacional literário e cultural diversificado, como convém a um roteiro. A viagem da imaginação é fundamentada na prática da escrita surrealista. Veja­‑se a este propósito a citação que abre o livro, extraída de Segredos da Arte Mágica Surrealista de André Breton:

Mande vir com que escrever, depois de se ter instalado num lugar tão favorável quanto possível à concentração do seu espírito sobre si mesmo. Coloque­‑se no estado mais passivo, ou receptivo, que puder.
Abstraia­‑se do seu génio, dos seus talentos, e dos de todos os outros. Repita a si próprio que a literatura é um dos mais tristes caminhos que levam a tudo.

Julgo que esta deriva citacional, que é também viagem (caminho) na e pela literatura, que o poeta vai convocando, quase à maneira sinalética de destinos e trânsitos, se concretiza nos seus textos como narrativa poética e metapoética. Com efeito a herança surrealizante investe a poesia de White da força de certos textos do modernismo. A vigorosa sensualidade, aliada a uma forte componente mística, que anima a escrita whiteana é simultaneamente devedora de várias intertextualidades. Não é por acaso que Walt Whitman surge referido como epígrafe no seu terceiro livro e em Janela Para Oriente a poética de Álvaro de Campos espreita continuamente do cais (aqui, de uma singular janela) enigmático da ode marítima. Com outras rotas, obviamente, e outro ritmo, mas igualmente refrânico e encantatório.

A viagem, simultaneamente como fuga de si, evasão, alteridade e conhecimento, como expansão confronto e descoberta cultural, a viagem como cais de partida, à janela de si, para o insondável esoterismo (também pessoano) e processo de iniciação, quase místico, uma vez que a viagem transcende o sujeito e o renova. Ainda em outras passagens dos poemas de White se reconhece o apelo quase ingénuo, bucólico e acolhedor de Alberto Caeiro; todas estas vozes e outras, textualmente citadas ou não, perpassam na escrita do poeta, mais ou menos dissimuladas, refeitas no seu trajecto, inventado a partir do cosmos doméstico. Um olhar descritivo­‑sensi­tivo a partir da janela regressa, mais rico à mesma casa, que também pode simbolizar o país, reinventando a geografia cultural moçambicana neste processo de viagem.

Referências Bibliográficas:

Gannier, Odile. La Littérature de Voyage. Paris: Ellipses, 2001.

White, Eduardo.Amar sobre o Índico. Maputo: Aemo,1984.

White, Eduardo. O País de Mim. Maputo: Aemo, 1989.

White, Eduardo. Poemas da Ciência de Voar e da Engenharia de Ser Ave. Lisboa: Caminho, 1992

White, Eduardo. Os Materiais do Amor seguido de O Desafio à Tristeza. Lisboa: Caminho, 1996.

White, Eduardo. Janela Para Oriente. Lisboa: Caminho, 1999.

White, Eduardo. Dormir com Deus e um Navio na Língua. Braga: Labirinto, 2001.

Tadié, Jean­‑Yves. Le Récit Poétique. Paris: Gallimard,1994.

Ana Mafalda Leite no Festival de Literatura Resiliência III. E.Q – Arquivo da Revista Literatas

ANA MAFALDA LEITE é ensaísta, docente e principalmente poeta, com mais de 30 anos de trajetória criando versos: seu primeiro livro de poemas, Em sombra acesa, foi publicado em 1984. Nasceu em Portugal, mas cresceu e fez os primeiros estudos universitários na Universidade Eduardo Mondlane, de Maputo, Moçambique.

É docente na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, com Mestrado em Literaturas Brasileira e Africanas de Língua Portuguesa e Doutora em Literaturas Africanas, sua área principal de investigação.  É Professora Associada com Agregação da Universidade de Lisboa, pesquisadora do ISEG do CEsA, com bolsa da FCT.

Desenvolveu pesquisa de Doutorado e Pós-Doutorado, na Escola de Estudos Orientais e Africanos (SOAS) da Universidade de Londres, na Universidade de Roma e na Universidade de Dakar.

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