A INSOSSEGÁVEL TAREFA DE PENSAR O PÓS-INDEPENDÊNCIA

«Até ao começo da última década do século passado, época em que me estreei com a Sarnau e Mwando como um discurso interrogativo sobre a hegemonia paternalista ainda acentuado na velha marcha marxista-lenenista, da antiga República de Samora – as questões da racialização e do género estavam na moda», disse despistando a mão próximo a uma pequena mesa inclinada. Lá mais para o interior da casa, junto a um pequeno varal suspenso numa esquiva extremidade da cabeceira, era ainda possível ver a neta pela encosta do reflexo embaçado pela fumaça do Cigarro. Na época, o tempo – os nossos encontros, nesse caso – estavam entre um provável título sobre as nossas conversas e uma ténue embriaguez propositada. E hoje, isso, lembra-me Hemingway na Rue de Fleurus, 27 com O Inquilino de Lowndes nas mãos. E um pouco antes do final dos apartamentos militares; numa ruela coalhada de pessoas procurando um motivo novo num carácter dramático da condição humana para o próximo amanhecer – está a casa dela numa infinidade de pequenas metamorfoses se acumulando. «O meu café. Depois vai me comprar duas Cervejas», gritou para Ofélio, enquanto caminhava para um lado oposto da casa; inclinei a mão esquerda para acender o cachimbo. Antes de desviar para um outro lado, comentou que na altura do seu primeiro livro recebera inúmeras críticas depreciativas, principalmente por ter sido uma mulher fora do círculo das mulheres de um pigmento misto, como também por ter trocado o paradigma narratológico europeu-escolástico e, de uma certa maneira carente, para assimilar as marcas do nativismo telúrico com uma voz de sagração estética própria. Virei a cadeira e pousei sossegadamente a sacola aos meus olhos. Tive-a depois de várias idas à Kibelândia – um pequeno largo entre as ruelas Victor Meirelles com Nuno Machado; ao dobrar o quinto copo com a vista a contorcer-se para o balcão, falei para a Nelita sobre Buarque; sobre como ele abre o Capítulo nono do Leite Derramado com um recurso histórico dos turvos anos da ilegalidade no Chicago depois da lei seca e como isso deu notáveis expressões para o pensamento posterior. Subimos depois pela Igreja; entramos por um pavimento encharcado entre a rua Deodoro com a Filipe Schmidt para desaguarmos na Catedral Metropolitana, junto à Praça 15. Enquanto repetíamos o ritual pela SC 401, por cima do Centro Integrado de Cultura para dar à Beira Mar – articulei-me nas cinzas caídas num dos bancos para depois cruzar os olhos num inconsequente disfarce de dor. Passavam-se 30 dias depois do velório que me lembra continuamente a primeira entrada a direita do primeiro piso do Bloco da Medicina.
«Foi assim como tudo começou», veio falando com as mãos na camisola. A neta bateu na porta e subiu para o portão. Fitei-lhe os cabelos no mesmo instante em que Ofélio abria a garrafa de cerveja. «Chamaram isso de assalto à Instituição Literária», tornou a falar com o pé esquerdo a puxar a cadeira. Pulou o fogão de carvão que estava ao meu lado direito e sentou-se. Alojou o cigarro entre os dedos perguntado por que razão deveria escrever o que o imperialismo colonial queria para vender se ainda o povo precisava de saber aonde estavam as suas riquezas culturais. «Na verdade, é quase isso que Appiah diz sobre os romancistas», respondi. «É neles que se articulam as questões mais lúcidas da nossa identidade», tornei a comentar com as mãos esticadas na lareira. «A questão não é sobre o autêntico, mas sobre a sinceridade. É nela onde respira o colectivo; as nossas tradições; nossas histórias; nosso povo. É isto que no período da revolução, fascinado pela cólera da modernidade – as nossas elites políticas – proibiram para propor, por exemplo, a monogamia de teor cristão e o fim da nossa religião africana em nome dum sistema falhado. Eu voltei a escrever sobre isso em outros livros – a história que entretece Rami e Tony ou mesmo David e Clemente no Sétimo Juramento», insistiu com os lábios a prender o Cigarro num intermitente intervalo com o copo a transpirar por cima da bandeja cinza. Instou de outro lado o Ofélio para que nos deslocássemos para a sala. Não me admirou a reação da Paulina ao mandar pôr o jantar no lugar onde estávamos sentados. Inclinou as mãos para alcançar o fósforo que estava ligeiramente distante. Lançou o resto do Cigarro, a comentar que ninguém aceitou por muito tempo a sua proposta estética. «Havia gente até na AEMO que fazia de tudo para limitar minha circulação. Principalmente depois da minha loucura. Ninguém quis saber de mim», disse, a afastar com o cotovelo uma extremidade do pano a propender-se obsessivamente para a fogueira. Recusei uma lágrima enquanto continuava, evidentemente, muito triste. Movido por uma vontade de esclarecer alguns equívocos, falou da repulsa que sofreu nos meios literários.
Da varanda, seguíamos a escuridão da noite perdida no jardim do seu quintal enquanto descíamos ambos noite abaixo. Passavam das 11.00 horas da noite. A relva continuava molhando de orvalho e composta por pequenas porções cinzentas de restos de cigarros contrabandeados pela mão. Sosseguei algumas outras coisas ditas. Por algum momento perguntei o que movia sua escrita. Puxou mais um cigarro com a mão esquerda, quando a outra feria compassivamente a terceira colher de café em água morna. «O meu lugar de começo; esse chão que me viu nascer; me alimentou; o meu povo», respondeu levantando-se como uma aldeã a terminar o brilho das estrelas na concavidade estreita dos prédios. A cozinha fica numa perspectiva adjacente a garagem coberta por um relevo campesino de caixas e estilhaços de madeira. As vezes penso nisso numa perspectiva não somente de phatos, mas também do topos onde o conhecimento é partilhado. Esse lugar de começo sobre o qual Paulina talha sua perspectiva estética que se anula de um modelo contrário ao identitário. Uma tessitura imersa na busca por uma resposta ao chamado colectivo dado pelas vanguardas diaspóricas inauguradas no Harlem. Virou-se, porém, todas as vezes quesentamos com os olhos dobrados para o portão, lembra-se sempre da noite de chuva fria. Diz ter sido na mangueira à esquerda ao entrar em sua casa que teve o que escrever Na mão de Deus, um livro pós-loucura. E numa dessas noites, de outro lado da garagem – chorou. Olhei-a e, tomei-na nos meus braços ofegando a mágoa. «Calma…», eu disse.


O autor

Dionísio BAHULE,
Filósofo, ensaísta e Crítico de Arte.

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