ARTE NO QUINTAL Artistas queixam-se que não há espaço para todos

O isolamento social imposto pelo novo corona vírus afectou diversos sectores da sociedade, entre eles, o Sistema das Artes e da Cultura. De forma a responder a essa situação o Ministério da Cultura e Turismo anunciou o projecto “Arte no quintal”. Entretanto os artistas plásticos, técnicos de som, profissionais do teatro sentem-se excluídos.

Em Dezembro do ano passado a media foi sendo tomada por um vírus que estava a causar milhares de óbitos em Wuhan, na China. No dia 2 de Janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou tratar-se de uma emergência de saúde pública a nível internacional.

A medida que os dias passavam, notícias ia chegando de diferentes lugares mundo, noticiando casos positivos até que, no dia 11 de Março, a OMS, declarou que a COVID-19 tinha atingido o estágio de pandemia.

No dia 13 de Março, o Presidente da República, Filipe Nyusi comunicou que, em reacção a evolução da patologia, proibia-se a realização de eventos que concentrassem mais de 300 pessoas.

Uma semana mais tarde, o Chefe de Estado anunciou uma restrição ainda maior, limitando a concentração de pessoas em eventos para 50. De imediato o sector das artes e cultura recebeu o golpe.

Em cumprimento da medida, vários produtores, artistas, centros culturais, galerias cancelaram ou adiaram (na expectativa de ser uma situação passageira). Repentinamente os artistas e os técnicos, entre outros profissionais, que ganham o seu pão através das artes ficaram sem fonte de renda.

Tomados pelo desespero de um futuro negro, a classe, através das redes sociais foi questionando ao Ministério da Cultura e Turismo: “como iremos viver?”, “teremos algum apoio?” E outras perguntas foram surgindo.

No dia 11 de Maio, a titular da pasta Edelvina Materula, lançou o projecto “Arte no Quintal”, uma iniciativa que prometia prestar apoio financeiro aos artistas moçambicanos que, devido à pandemia, não podem continuar com o seu ritmo de produtividade.

“Queremos minimizar o impacto negativo da Covid-19 na área da cultura”, disse a ministra, considerando ainda o “Arte no quintal” um instrumento de comunicação que poderia fortalecer o papel das artes na mudança de atitudes.

Prosseguiu referindo que a intenção de, com o projecto, despertar um movimento cultural solidário de apoio a todos afectados pelo vírus, e entreter as famílias moçambicanas neste período de confinamento.

Para o efeito, o Governo, junto de parceiros disponibilizou cinco milhões de meticais com a promessa de contemplar, numa primeira fase, 150 artistas de todo o país a criar actividades que estão a ser difundidos ao vivo e aos finais de semana no Facebook, You Tube e Instagram.

O dinheiro aplicado no projecto foi disponibilizado pelo Fundo para o Desenvolvimento Artístico-Cultural (FUNDAC), Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), o banco ABSA e a Galeria do Porto de Maputo e a empresa de telefonia móvel Tmcel.

Conforme o anúncio, nas outras províncias, esta acção foi feita com o apoio das direcções provinciais de Cultura e Turismo, que terão trabalhado com as associações e centros culturais na escolha dos artistas.

Na sequência da notícia, os artistas “esfregaram as mãos”, sorridentes e esperançosos de uma fonte de renda para, nestes dias em que, na sua maioria, não podem trabalhar, colocar pão na mesa e pagar todas as suas contas.

A falta de um formulário de inscrição causou um alvoroço nas redes sociais, onde há grupos integrados por profissionais do sector. Repentinamente, nos dias 14 e 15 do mês passado, surgiu uma ficha de candidatura nas redes sociais, que era direccionada apenas aos músicos. O documento foi partilhado inclusive pelas direcções provinciais de Cultura e Turismo. Em reacção o ministério informou que era falso e que iria, oficialmente, lançar um formulário.

Entretanto, apesar da comunicação oficial indicar que ainda estava a trabalhar na ficha de inscrição, já estavam a ser anunciados alguns eventos integrados no projecto. Outra pergunta surgiu: se ainda não existe formulário de inscrição, como é que esses artistas foram escolhidos?

Sem esclarecimento dessas dúvidas, os eventos já estão acontecer, entre debates, concertos e outro.   

Não é um projecto inclusivo

“Nós não recebemos nenhuma informação oficial, só ouvimos dizer”, lamentou André Macie, presidente do Núcleo de Arte, casa tradicional das artes plásticas do país, onde formaram-se nomes como Malangata, por exemplo.

Com uma oficina na qual trabalham vários artistas e uma galeria de exposição, a instituição, disse o seu representante, mesmo tendo contactado a Direcção das Indústrias Culturais e Criativas, não foi esclarecida.

“Tenho a impressão que aquilo é só para beneficiar aos músicos”, desabafou o artista plástico.

André Macie disse que neste momento apenas o sector administrativo é que continua activo, as oficinas e a galeria estão encerradas. O Núcleo de Arte esteve a funcionar até Março, quando foi anunciada a primeira medida restritiva.

Prosseguiu referindo que de Março até Junho, com esta situação viu-se obrigado a cancelar seis exposições, entre colectivas e individuais.

No momento, chama atenção a Macie, o horizonte é de uma escuridão espessa, pois, o mercado de arte em Moçambique, vive essencialmente de compradores externos, entre estes, os turistas que estão impedidos de viajar sem previsão de poder-se voltar a fazer isso num futuro próximo.

Ainda nesse diapasão, o artista plástico recordou que os materiais usados para a pintura e quase toda a produção de artes visuais é importada, o que, na impossibilidade de sair do país, impede que se continue a produzir.

“Uma assistência é urgente”, defendeu André Macie, referindo ser esta, por outro lado, uma oportunidade para que se pense com mais profundidade num mercado interno de arte.

“Durante vários anos ficamos a olhar só para o mercado internacional, mas está claro que temos que começar a para dentro; a pensar como é que podemos produzir os nossos materiais de trabalho”, acrescentou o presidente do Núcleo de Arte.

Algo está a falhar

 O sentimento de exclusão é partilhado pelos profissionais do sector do Teatro, que igualmente consideram a música privilegiada na iniciativa “Arte no quintal”.

Dadivo José em palco

“Isto revela uma ignorância sobre o movimento artístico nacional”, considerou Dadivo José, actor, encenador, docente de Teatro da Escola de Comunicação e Artes da Universidade Eduardo Mondlane, para além de ser músico.

O modelo que está a ser usado neste projecto, observou, é distante da dinâmica do sector, pois não leva em consideração, por exemplo a média de espectáculos de teatro que acontecem semanalmente.

Enquanto membro da Associação Moçambicana de Teatro (AMOTE), Dadivo disse que “nós do teatro não fomos comunicados e quando questionamos responderam-nos que seria abrangente, o que não está acontecer”.

Na opinião do docente, agir desta forma, não se comunicando com os actores que diariamente vivem o sector, o Ministério da Cultura e Turismo expõe-se ao risco de “cair no ridículo”.

Neste momento, continuou, há actores, dramaturgos e encenadores que estão a produzir

Rádio dramas para amealhar alguns tostões. Mas há uma larga maioria que vive de performances que está, como diz-se vulgarmente, “a ver poeira”.

“Um e outro está a produzir artigos científicos para revistas especializadas mas está mal para muitos artistas”, disse Dadivo José, que convive com o meio há mais de 20 anos.

Com efeito, é defensor da corrente que apoia a imposição de conteúdos nacionais na rádio e televisão nacionais e, a posterior, que essa transmissão seja revertida para o artista em royalties.

“De modo geral, ainda não criamos formas de sermos pagos pelo consumo das nossas obras através dos órgãos de comunicação”, deplorou Dadivo José para quem, por outro lado, esta é uma oportunidade para que as televisões resgatem as entrevistas, vídeos antigos, entre outro material que ajude, por exemplo, a geração nascida nos anos 90, a perceber a história das artes em Moçambique.

O Estado tem de olhar para

o sector como parceiro

Com base na Pesquisa sobre o Impacto da Pandemia COVID-19 no Sector Cultural e Criativo em Moçambique que a AMOTE está a realizar com a académica Matilde Muocha, cujo objectivo é medir os efeitos da pandemia na indústria e para os seus protagonistas, Dadivo defendeu que o Estado olhe para os artistas como contribuintes.

“A pesquisa que elaboramos está a revelar que o Estado, só nos últimos dois meses, perdeu cinco milhões de meticais em receitas fiscais que poderiam vir das actividades dos artistas”, fez saber Dadivo José.

Do total de 78 entrevistados, sendo, conforme a pesquisa que tivemos acesso, há uma perda financeira na ordem de 33 milhões de meticais. Refira-se que entre os inquiridos 27 são do sector da música, 23 do teatro, 12 da dança e os restantes provenientes de outros sectores culturais e criativos. “Na sua maioria, os respondentes da pesquisa são da Cidade de Maputo, sendo em cerca de 40%. Do global dos respondentes, 21,9% declararam ser da Província de Maputo e 13,7% da província da Zambézia”, lê-se no documento.

Trata-se de uma pesquisa que terá a duração de 3 meses (de 14 de Março a 14 de Junho de 2020), período que se prevê que haja confinamento e restrições de aglomerações. Pretende-se que seja um estudo de dimensão nacional. Pelo que os dados que estamos a usar são preliminares.

Podia-se incluir outras casas para ser abrangente

Paulo Borges é técnico de som e proprietário do Café e Bar Gil Vicente, na baixa da cidade de Maputo. O “Gil” é uma das referências de música ao vivo na capital do país, entretanto não foi contemplada pelo “Arte no quintal”.

Gil Vicente pré-covid

“Até agora não fui contactado e tenho reparado que convidam sempre os mesmos técnicos”, disse Paulo, referindo que o “silêncio” é extensivo a sua casa de pasto que, em condições normais, tal qual o Xima ou o Elvis Bar, “alimentam” aos artistas.

O projecto, disse, não está a ser abrangente até porque, no que diz a sua categoria de técnico, sequer consta do formulário disponibilizado pelo Ministério da Cultura e Turismo.

Ainda no mesmo fio Paulo Borges disse ter observado que os técnicos a trabalhar no projecto são os mesmos. Quando poderia haver uma rotação, que permitiria mais beneficiários.

É neste contexto que defende, igualmente, que “o programa podia acontecer em espaços diferentes como o Xima, o Elvi’s Bar e outros activos para que possamos pagar os salários e outros compromissos”.

O quadro que Borges vê é, a semelhança de André Macie, negro espesso misturado a uma sensação de desamparo.

“O pior disto é a sensação de que ninguém está a olhar para nós, que fomos deixados para trás”, concluiu.   

Ministério da Cultura e Turismo: Arte no Quintal é para todos

Com o objectivo de ter um esclarecimento do Ministério da Cultura e Turismo, enviamos um e-mail com as perguntas. Passamos na íntegra a pequena entrevista, cujas respostas são assinadas pelo Assessor para Área da Cultura
Ministério da Cultura e Turismo Tiago Langa.

Quais são os critérios para se beneficiar da iniciativa Arte no Quintal?

R: Para se beneficiarem do arte todo e qualquer artista pode preencher o formulário disponível no site do Ministério. É naturalmente muito importante o preenchimento do espaço destinado a apresentação do projecto. Estamos a receber propostas e o resultado será contemplado no Arte no Quintal.

Quem faz a gestão do fundo?

R: A gestão é feita pelos envolvidos na materialização deste projecto, todos os patrocinadores e o próprio Ministério tem clareza da transparência financeira do projecto. Estamos cientes que só a transparência e seriedade do projecto permite o envolvimento destas e outras empresas do sector privado que acreditaram na importância de apoiar as artes em Moçambique.

Apostamos e acreditamos que a transparência na gestão deste fundo será determinante para a durabilidade desta iniciativa, porque queremos e esperamos que o projecto dure para além deste período de confinamento.

Há artesãos, artistas plásticos, profissionais do teatro, os engenheiros de som, os cineastas a queixar-se de exclusão. Como é que ministérrio olha para esta questão?

R: Nada e ninguém está excluído. Para tal, teríamos de ter recebido propostas dos mesmos sectores e ter recusado. É importante dizer que alguns dos sectores aqui mencionados já estão envolvidos por terem enviado as suas propostas devidamente fundamentadas e é o apelo que fazemos a todos.

Há casas de pasto que diariamente abriam as portas para concertos. Em Maputo, por exemplo, podemos citar Xima, Elvis ou Gil Vicente. Este grupo de intervenientes está incluso no projecto?

R: Todo o sector da indústria cultural e criativa deve estar envolvido.

E, uma última pergunta. Pelo que percebemos da louvável iniciativa Arte no Quintal, é uma resposta para os artistas que vivem de performances. Mas e os escritores, por exemplo, será que enquadram-se neste projecto e se não, como é que estes podem beneficiar?

R: A literatura e todos estão envolvidos e este projecto não se trata apenas de performance. Que fique claro. Os debates, lançamentos de livros ou publicações, exposições virtuais entre outros são alguns dos vários exemplos de promoção da arte moçambicana. E é por isso que acreditamos na necessidade desta plataforma para hoje e amanhã.

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