Tentei escrever

Ontem, levantei-me no silêncio da madrugada, para escrever, mas não consegui. Há dias que não consigo pagar uma dívida que tenho comigo mesmo. Até o sono parou de me visitar,  não suporto a ideia de não conseguir criar sentido, deslizando a tinta da caneta sobre um papel em branco. Por isso, hoje decidi não me deitar, justamente para não ter que interroper o meu descanso e me levantar de novo no horário do áuge do sono. Decidí me manter acordado, acompanhar cada momento que perdemos enquanto dormimos, quem sabe isso me sirva de fonte alternativa de inspiração para, enfim, sujar o papel emaculado, de tamanho A4, que há meses de segunda-feira, se encontra deitado no topo de uma mini secretária, bem no centro do quarto.

A presença da folha virgem excitou os meus dedos, levantou os meus pés da cama, mas não estimulou a minha mente, que ficou bloqueada ao ver as perfeitas curvas rectas que o papel exibia. De madrugada, eu acordei,  acendí o candieiro que funciona à petróleo e sentei-me na cama a bocejar ideias de textos que não apareciam. Indignado, abandonei o conforto do leito, coloquei o meu corpo num banquinho, de frente para a mesinha que suportava o peso do papel em branco, peguei numa esferográfica e tentei escrever. Quis escrever sobre tudo, desde os filmes de assaltos de que tanto gosto aos assuntos que mais me entristecem, mas acabei não escrevendo nada. A cada vez que aproximava a caneta ao papel, a minha mente bloqueiava as palavras projectadas, os meus olhos se fechavam lentamente e a minha cabeça acenava automaticamente, implorando por mais horas de descanso.

Não podia retornar a cama, era injusto dormir com uma folha nua no quarto, implorando por jactos de tinta. Levei as mãos à cara, esfreguei os olhos e reparei no corpo branco estendido diante de mim. Senti-me impotente por não poder satisfazé-lo. A vergonha foi tal que entrei em processo de introspecção, questionei-me sobre o que o futuro reservaria à um Homem que sequer consegue escrever uma palavra num papel inocente.

O ambiente era sereno e o ar estava seco. Decidí, então, sair para tomar ar e molhar a garganta. Caminho até à cozinha, entorno um copo cheio de água na boca. Respiro, profundamente. Mesmo assim, o passado recente ainda me castigava. A minha intenção, sem a prática, de nada valia. Indignado, retornei ao quarto decidido a mudar o rumo dos acontecimentos. Segurei de novo na esferográfica, posicionei-me, tentei escrever mais uma vez. Ainda nada me ocorria, reparei no tecto de chapas de zinco, percebí que não estava sozinho. Ví sombras de duas lagartixas a se moverem em passos lentos, sem pressa, uma vez que o quarto também é delas. Voltei a minha folha, olhei para ela profundamente, coloquei a esferográfica no topo e apontei o título ‘‘Tentei escrever’’.

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