Acho que é desta, meu cota

“Andaimes/Até o décimo quinto andar/Do moderno edifício do betão armado”, não se vê por estes dias, velho. Tudo calou, na baixa. Mesmo o dumbanengue, sim, ali na Guerra Popular, já não tem. Tranquilamente, num passo leve, bebe-se uma Coca-Cola, sentindo a brisa de uma tarde de Abril de dar inveja a Ella Fitzgerald e Louis Armstrong na sua Paris.

Aquela cena de “O ritmo/Florestal dos ferros erguidos/Arquitectonicamente no ar”, não tenho visto. Quando muito, a um transeunte curioso, a pergunta que lhe ocorre é: não estou perdido?

– Eu, por exemplo, ia à rua Joe Slovo. Olhei para o relógio, marcava oito. Os picos dos raios solares desferiam-me golpes no rosto, ainda apesar de sono. A baixa estava seminua, sensual, tal qual a abolição de Felismina, que nem pude vê-la.

– Sabe, meu cota… a coisa está feia por aqui. Não muito. Podia ser pior. Ali na Rua Araújo, em surdina te peço que não contes ao Rangel – imagino o seu semblante triste ao ouvir que só restam sombras – não há cabarés abertos, não há café. Nem uma em pé. Nos passeios, logo pela manhã, é que ainda têm muitos carros. Mas não como era dantes.

Com o ronronar dos motores a meio gás, vou ganhando a certeza de estar no caminho certo à medida que os edifícios revelam-se aqueles mesmos a que estou habituado: pálidos. A académica ficou para trás. A multidão revela-se naquele corredor. Uns estão apertados, ignorando um metro e meio mínimo. Estão a uma distância de um braço de criança, na fila para o banco, do lado de fora.

Os carros, há muito donos dos passeios, igualmente, no gozo da sua conquistada e inquestionável independência. Ignoram qualquer medida de isolamento social. Fazem becos tal qual ou mais apertados que os do Chamanculo. É entre os centímetros dispensados pela generosidade dos carros que a outra parte da multidão disputa espaço para caminhar, sempre obediente a sua habitual pressa.

No lado oposto ao que percorro, a rapaziada lava outros carros por umas moedas para Gt, Tentação e feijoada de 50, na viatura da esquina. Aos assobios, dançam Mr. Bow, animados. Afinal a vida é uma festa. Eu é que não lembrava. No café, homens de blazer, as vezes gravata, sola de madeira; mulheres de unhas cumpridas, salto alto, cabelo importado, executivas a espalhar o Clair de Lune. Tomam café, entre as mesas desertas. Comem tostas, chocolate quente. Ao lado, o sapateiro engraxa. Já não vende os chinelos e sandálias que fez com pouca fé. Os olhos não mentem. Já não vende doces nem cigarros.

É tudo menos que o habitual.

Já na Redacção, miro da janela. Tomo um chá com limão, pão com badjia comprados na senhora da frente, à procura de uma crónica. Vazio, meu cota, sentei-me em frente ao computador para esboçar a crónica há anos prometo enviar. Nisso, uma pauta caiu-me na mesa, uma urgência: apanharam um mbafa.

HORAS DEPOIS

A fonte: Quotidiano, um jornal do bairro

Assinatura: Milton Gulli

“Puto reguila saltou o muro, no Xipamanine, levou sem pagar… ntlha”, foram estas as suas palavras da dona Zaituna, vendeira no Xipamanine. Levou bolachas Estrelinhas e Tofco. Feita a operação, o gajo fugiu. Sem aquela música do filme, de repente, só agarraram o gajo, a atravessar a Avenida de Angola. Desmaiou e só acordou com chamboco, na esquadra. O menino: (trombudo) “minha avó não me dá comida”, disse.

Cota, quando fui a fundo, percebi que afinal nem era Muhive aquele puto. Contou-me que é jogador de futebol. De tarde corre com os outros no caminho da Mafalala. Na verdade, a mãe trabalha num hotel na Sommarchield e o pai é baterista. Perderam o emprego com a pandemia.

– Cota, acho que desta a crónica sai…

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