Caminhos possíveis

Ao Venâncio Calisto e Miguel Luís Sousa

Quando em mim já não há refúgio, busco exílio nas memórias…os meus amigos. Há dias tentei escrever uma carta ou um texto simplesmente. Não sei se sei escrever cartas, nem as de amor, no meu tempo já mandava-se sms. Abandonei o teclado porque entretanto uma imagem insistia: a morte na maçaneta da porta principal, entre os dedos, a dar-me beijos no rosto. Abandonei.
Os destinatários seriam Venâncio Calisto ou Guilherme Roda (também não sei) e o Miguel Luís José. Era com eles que apetecia-me celebrar o rouxinol, na prosa. Vivendo eles um isolamento social mais restrito em Lisboa, que o nosso de Maputo. Passo os dias perguntando-me o que é isso, mas sem dúvida, é triste. Então eu quis escrever-lhes qualquer coisa mas não me ocorria nada, senão esta imagem: a morte na maçaneta da porta principal, entre os dedos, a dar-me beijos no rosto. Abandonei.
Desisti de escrever. E no scroling habitual no Facebook, apareceu-me uma crónica do Venâncio Calisto (bom, assina assim, agora). Era solitária. Era um canto triste. O chilrear era um choro. O pássaro está ferido? O que responder? Um riso escapa-me ao perceber que ele entregou a dor a poesia. Viva a liberdade. Só os poetas, todos, de prosa, da venda de tomate nos dumbanengues, ovo cozido na rua, de batatas, de badjia, o Taruma, o Lineu… só os poetas sabem. A poesia é existir e não tem que ser linda, basta-se bela. Ou sei lá! São palavras e nada mais, nada que sustente o que pretendo…ao abraço. Eu sei, não é fácil inventar outra esquina, outro canto da alma para chorar quando o corpo, igualmente, não para de aprender o outro, o novo (talvez) espaço. É que de bem bem, ambos sentem mesmo é em Ronga e Xichangana, na longínqua Lisboa. Mas é balela. Um ponto de ordem, concordo com o Mbate: a poesia é a única prova da existência da humanidade”.

Teimosamente voltei ao Word, o silêncio é uma quimera para quem o pensa realmente vazio de tudo, um lugar suspenso. O calar do som, o calar das conversas dos transeuntes da rua à frente, da música dos carros com aparelhagem potente a competir Mr Bow e Lizzy. O silêncio disso tudo não é nada, se a alma está inquieta. Tomei o teclado, respirei fundo. Caos, crise, encurralado. “Gregor Samsa, Gregor Samsa, Gregor Samsa, Gregor Samsa!”, li no word, depois do delírio de seguir as palavras a ganharem a forma de um texto pelas minhas mãos. Que resposta? Kafka? Ao Miguel, o Lobo Antunes é que mais o fascina por estes tempos. Com a neblina contaminada, concluo que Metamorfose não deixa de ser precipitado. Ou não?
…o pior é que não sei. Talvez escrevesse ao Miguel para comentar a crónica (ou conto) dele no segundo volume da colectânea Contos e Crónicas para ler em casa, coordenada pelo Eduardo Quive e o Mélio Tinga. É um justo desbloquedor de conversa. Nisto, uma ideia toma-me apaixonadamente, escrevo: “a realidade muda-se a velocidade e agilidade do cuspo e da agilidade de uma naja cuspideira”. Mas é algo turvo, com ruídos, parece-me. Procuro por texto com flores.
Tentando dar seguimento a ideia “Gregor Samsa”, esboço um diálogo:Não te tornaste insecto, aliás, não acordaste insecto, é certo. Diga-me, como sentes o teu corpo, nestes dias? – reagiu uma voz.
Este álcool já faz-me mal – lamentou um outro – Nem um gole, sinto a mandíbula a vacilar no que de repente zás: nem bebi um copo. É só cheiro. Preciso de um copo de verdade.
“Não sei…esta atmosfera penetra em almas sensíveis, sinto um fogo interior, a festa dos órgãos”, responde o inquerido sobre estes dias. – Tenho fingido normalidade diante de uma realidade que não cansa de nos lembrar que não é ficção. Os mortos. São muitos mortos – conclui.

Esta cena dos mortos já me incomoda. Eu só queria escrever uma prosa e dedicá-la aos meus amigos. Era um refúgio para encontrar-me. O texto não sai, sobra-me o conforto daquele abraço fraterno.

Preciso escrever.

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