METADE DA EMERGÊNCIA

Escrito por Elcídio Bila

TU

Tu és muito mais

Que um corpo, uma alma

Teu sorriso me satisfaz

Ausente, meu mundo desaba

Tu és muito mais

Que uma voz, um cheiro

Teu perfume é eficaz

Violentamente perfeito

Tu és a brisa da madrugada

Aquela que afaga tormentos

Eliminas qualquer praga

Com esse teu meigo… jeito

Tu és a luz que não se apaga

E multiplica-se pelo mundo inteiro

Quando não vens tudo se cala

E tudo… é passageiro

Tu és a força que eu queria

Para derrubar o mal e seus aliados

A viagem que sempre suportaria

E morreria ao teu lado

Tu és o vírus que me contamina

Feito um animal doméstico ou felino

É tão bom saber que nesse dia

Voltamos a partilhar o meu carinho.

Do teu esposo e amigo,

Mário

O poema, escrito em letra cursiva, num papel A4, tinha substituído o corpo grande de Marito doutro lado da cama. Maria teve muita dificuldade em se espreguiçar naquele dia, pois a cada movimento dos seus músculos um verso lhe tocava a alma e equilibrava a sua emoção. Só seguiu, com todos os protocolos, o processo de espreguiçamento quando, finalmente, terminou de ler. Ah, isso depois de repetir uma centena de vezes.

A assinatura era mesmo para não deixar equívocos. Não se tratava de um poema de Eduardo White, seu escritor preferido, nem de um renomado estrangeiro, muito menos tinha sido fruto de suas satisfatórias visitas ao Google.Que não houvesse dúvidas.

Quando a assinatura visitou os seus olhos, a manteiga derretida iniciou um festival de lágrimas. Desta vez leves e menos violentas. Limpou aquilo com cautela e pegou no papel para tirar satisfação. Ora essa, um golpe baixo logo pela manhã!

O autor do poema estava deitado de barriga, por cima deleuma pequena criatura estava a dançar. Bom, na verdade, estava a pisoteá-lo, numa frustração desmedida de fazer massagem.

Era como se precisasse de relaxar depois de ter desprendido muita energia naqueles versos. Mas que nada. Marito escreve desde que se conhece amigo da esferográfica. Já ganhou um e outro prêmio na escola secundária, e houve tempos que até escalava rádios e televisões para declamar os seus poemas. Ele gostava de escrever…

– Agora é a minha vez. – gritou Wezz, clamando por espaço nas costas escuras do pai.

– Não, agora é a minha. – frustrou o menino, Maria, mas a sua voz dócil permitiu que não houvesse briga.

Ela aproximou-se do palco, ou melhor, do tapete no centro do sala e agachou-se. 

– Nós estamos a fazer com os pés. – corrigiu a Wilma.

– Sim, não é isso. – o irmão também reprovou.

– Cada um usa as armas que tem, pestinhas. Vocês os pés e eu as mãos.

– Pai, é assim? – a menina pediu a confirmação daquele acto que não se coaduna com a sua etiqueta da massagem.

– Deixem a mãe, ela quer fazer assim.

Ela não só queria fazer daquele jeito, bem como já estava a fazer. A cada amasso naqueles ombros cheios, Marito soltava leves gemidos ante uma plateia constituída por Wilma, Wezz e todas as pessoas que estavam no programa Belas Manhãs, da TV Miramar.

Foi um exercício de mais de 20 minutos. As mãos de Maria, ainda que educadas, eram um exército com a missão de aniquilar todas as dores provocadas pelo colchão do hospital, e não pelo poema.

– O vosso pai escreveu para a mãe um poema. – divulgou a notícia do dia.

Os olhos radiantes pararam o lusco-fusco de repente. Aliás, não assim, mas quando os pestinham quiseram tirar isso a limpo:

– O que é poema?

Antes dela responder, o homem, ainda sentindo o calor das mãos a passear no seu tronco nu, acordou:

– É o maior gesto de amor que existe no mundo.

– O que é amor? – complicaram.

 É o que pai sente pela mãe. – arriscou.

– É o que a mãe sente pelo pai.  amparou o marido.

– E é o que nós sentimos por vocês. – sentenciou Marito, com um sentido de dívida paga.

– Onde está o poema? – voltou a curiosa.

– Está aqui. – entregou a menina. 

– Posso ler?

– Sim. – o pai acendeu a luz-verde.

Entre falhas e hesitações, Wilma disse o poema, conforme cada a forma e conteúdo de cada palavra. Todos mantiveram-se calados, até Wezz.

No final, aplaudiram a declamação. O pai aproveitou o momento para dizer algumas coisas. Uma delas é que amava muito a sua família, mais do que qualquer outra coisa. A segunda é que aquele poema marca a metade do Estado de Emergência. Ou seja, já tinham passado duas semanas eles trancados em casa, sem trabalho e sem escola.

No fim do discurso, eles fizeram uma pequena roda no meio da sala e se abraçaram todos, apertadamente.

– Se não fosse este isolamento, talvez não teria descoberto o quanto te amo. – disse o homem, projectado para esposa. As crianças, mesmo sem o alcance daquela oratória, o seu semblante mudo mostrava o quão eles também amavam os pais.

– Deixa te dizer algo, amor.

– Fala.

Maria-café, aliás, Maria arrastou-se para mais perto do marido, esquivando a informação à gentalha. Já no seu ouvido, de mansinho, abriu-se:

– Eu, na verdade, só aprendi a te amar nesses 15 dias.

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