Ausente

E no final parei de remoer.

Descobri que meus braços são fortes, mas as águas do rio são invencíveis; deixei o corpo leve, naveguei ao sabor da correnteza e mergulhei no senso comum que remedia o que não tem remédio; fechei os olhos, percebi que a morte reside nesta escuridão, que nos afasta da luz e das pessoas que estimamos. Desiste de desistir e resolvi voltar a remar, mesmo sabendo que vou perder. Remei mais que Phelphis, em mariposa, pista aberta, de bruços e percebi que estava no mesmo local. Enfim, remar era lutar contra a natureza, mas sabia que não podia desistir, tinha uma cadela por resgatar. Não poderia deixar aquele animal indefeso ser arrastado pelas águas.

Continue a nadar contra a correnteza, ganhei fôlego e percebi que meus braços venciam as forças da natureza, eram mais fortes que a ciência, desafinavam o velho manco e todas as suas teorias. Enquanto remava com intensidade, de baixo da água, sentia-me um submarino negro cada vez mais perto da meta. Agora estou há cinco remadas da minha cadelinha, sinto que ela precisa de mim para ser salva. Remo, remo, remo… já estou perto, estico a mão, pego no animal pela pata peluda, presumo, pois as águas cortaram a minha sensibilidade. Saio da água, deixo o animal inconsciente na areia cheia de lama e sem querer adormeço. No sonho escuto a cadela a ladrar feliz por eu estar ali. Abraço-a, digo que não saberia viver sem ela e que meu mundo desmoronou quando estava ausente.

Um raio de luz agressivo, típico dos domingos ensolarados me acorda, percebo que estou na lama, viro e olho para a cadela peluda, cheia de pedigree: cão boneco. Tem tantos pelos que nem dá para ver o focinho. Tento reanimar o animal, pois percebo que está imóvel. Pego-lhe pelos pelos e percebo que não é a minha cadela. Não é uma cadela, não é nenhum animal. Fico revoltado e jogo a peruca exótica no rio e percebo que o título do texto tinha razão, ela sempre esteve ausente.

Leave a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Scroll to Top