Escrito por Elcídio Bila
Quando regressaram do hospital, Maria acidentou-se com as suas trouxas no sofá. Era como se visse um leão ferroz: sentiu-se agredida. Ela já nem se recordava daquela ideia horripilante. Envergonhada, puxou a pasta, a mala e o cesto para o sítio mais escondido possível. Já que a Kita e o marido ainda estavam por ali, fintou-lhes o máximo que pôde, beijando as paredes, num jeito claro de quem assalta coisa alheia, seguiu para o fundo de sei lá que compartimento.
Marito, embora debilitado, de longe, assistia a incursão da esposa. Esboçou um sorriso malandro, descontando as peripécias do filme.
O esposo da Kita, que não vive no reino dos distraídos, quando seguiu com o amigo pelo quintal, ou para apanhar ar, ou para sei lá que besteira, iniciou o papo:
– Bro, a Maria queria te abandonar não é?
Ele, pasmo, como se não entendesse nenhuma vírgula daquela questão, admirou:
– Como percebeste?
– Ah… eu conheço essas gajas. E não te esqueças, mulher é tudo igual.
Deram-se as mãos com força. Quando se lembraram que não deviam juntar as palmas era tarde.
– O que aprontaste desta vez? – curioso, cutucou ao amigo.
Sem reservas, confessou:
– Dei uma “mpama” a gaja. Tu sabes que não sou disso, mas me stressou maningue.
– Está bem. Me contas outro dia com mais detalhes.
Os dois puseram-se a rir, encostados ao muro que separa as suas casas, mas não a amizade.
Lá dentro a conversa corria no mesmo ritmo de sorrisos e palmadas. Mesmo no Estado de Emergência a ideia de distanciamento por completo era um tabu para aqueles que sempre conviveram como família. É o caso dessas duas famílias:
– Marito é um sacana, mas gosto dele.
– Querias matar o coitado, sua assassina.
– Ah, teve um ataque de asma logo na hora que eu queria ir embora.
– Mas foi bom, não é. Querias ir para onde?
– Realmente foi. Saía para ficar na rua, isso sim.
Os risos de dentro enchiam as paredes e ainda sobrava bom humor para incomodar os que estavam no quintal.
Parecia ter voltado tudo à normalidade. Sem coronavírus e sem Estado de Emergência. A alegria, em alta, era tanta: tanto dentro de casa, como no quintal.
A festa ficou completa quando, de repente, Wilma e Wezz, os seus avós maternos e paternos, cantando parabéns, violaram os portões. Em volume alto, os visitantes da ocasião, que romperam o distanciamento social, vinham com tudo: boa disposição e alto-astral.
Um bolo, uma garrafa de champanhe e dois balões – um com o número três e outro com cinco. Este era o banquete que os três casais traziam.
Os presentes assustaram-se com aquele espectáculo. Já ninguém cogitava que Marito completava anos naquele dia. Era um dia concentrado apenas para a sua alta. Aliás, concentravam-se mais na possibilidade dele ter contraído a COVID-19.
– Feliz aniversário, pai. – adiantou-se Wezz.
A irmã, que nunca gostou de ser a segunda, foi a correr para a mesma felicitação:
– Feliz aniversário, pai.
Ele, caído de tanta emoção, agradeceu o gesto dos seus meninos e dos seus pais e dos seus sogros. Quando lhes chegou perto recordou-se do episódio que lhe levou ao hospital. Nesse momento, improvisou um discurso, alto e em bom som:
– Eu vos amo, meus pais.
Os seus intentos foram cumpridos. A esposa, ao ouvir aquela declaração de amor, ficou tão emocionada que se dirigiu ao centro e numa frase resolveu o seu problema:
– Feliz aniversário, meu amor.
Juntaram-se todos para cortar o bolo, finalmente. E mais uma vez cantaram parabéns para o indivíduo que completava três décadas e cinco anos, o principal suspeito de coronavírus. Mas, afinal, eram só suspeitas.
Depois do corte de bolo, quase que extasiados, os meninos, em coro, reivindicaram:
– Quando vamos voltamos para casa?
– Hoje! – responderam os pais, enquanto se beijavam com as taças.
Foi uma festa com 10 pessoas, tudo bem até aí. Mas os abraços e os metros de distância ficaram no decreto.