VISITA DE EMERGÊNCIA

Escrito por Elcídio Bila

– Kita, vamos.

– Pensei que já não fosses. Estou pronta faz tempo. – correspondeu a vizinha, virando a chave na fechadura uma dezena de vezes.

– O que se passa? Estavas a chorar?

– Estou de rastos. – confirmou Maria.

– O que se passa, amiga?

– Marito tem coronavírus.

– Corona o quê? – assustou-se.

Antes de seguir, parou no meio da rua, incrédula. A voz atroz da vizinha prendeu-lhe os movimentos. Era como se fosse mutilada os membros, um por um, a cada golpe. Deu por ela, não tinha mais forças.

– Não é possível, Maria. Não diz isso.

A vizinha limitou-se a lamentar, com um semblante de quem diz “não ter mais nada para dizer, infelizmente é isso”.

As duas, depois de uma pausa chocante, capaz de silenciar seus corações, arrastaram-se entre os becos de Mavalane à caminho do hospital.

Kita quebrou o silêncio que se prolongava já há dolorosos 10 minutos:

– Como sabes disso?

– Li na televisão. Todas as características do novo infectado são do Marito. Todas.

– Ah, Maria. Não seja ingénua. Quantas pessoas de 35 anos existem em Maputo?

– Pensei nisso, mas ele teve contacto com o médico infectado, aquele que cuidou de mim, logo é óbvio que é ele. É óbvio, Kita.

Kita, a cada passo dado naquele areal, lembrava das vezes que aos abraços fartos via seu marido com Marito, entre partilha de copos de cerveja e sei lá mais o quê pela noite adentro. Ao mesmo tempo, a jovem revivia a loiça emprestada em casa deles, entre outros objectos que trocaram um pouco antes da quarentena. Desastre! Era mesmo desastroso vê-la andar, é como se fosse para trás a cada passo. Como se devolvesse o tempo e as coisas todas não tivessem acontecido.

Não sabe como chegou ao hospital. Na verdade, não sabe porque chegou. O céu, malígno, parecia querer lhe esmagar. Via-o mais perto da sua cabeça. E aos poucos, é como se quisesse atingir o chão. Ela, mesmo parada, tinha a sensação de estar às voltas, como que num carrocel violento.

Não se fez de rogada, pediu a amiga que fosse atrás da confirmação sozinha:

– Vou ficar aqui no banco, tudo isso está a agitar a minha cabeça.

– Está bem. – consentiu Maria, seguindo pelo corredor estreito do hospital.

Maria, que já não queria deixar a amiga mais destroçada, engolia a dor, mas constantemente se condenava por ter exposto o marido ao vírus, os filhos e os vizinhos. Ela julgava-se a principal culpada por tudo que estava a acontecer, pois se não fosse o incidente que teve com o telemóvel não teria nunca parado no hospital. E recua mais ainda: se não fosse a conversa com o seu professor de Fundamentos de Marketing.

Esses venenosos pensamentos, enquanto caminha debilitada ao quarto onde está internado Marito, forçam-lhe a chorar, mas ela segura as lágrimas com a garganta. Por dentro, infelizmente, não se pode segurar nada. Tudo lá existe. A dor belisca seu coração com força, como um furacão em constantes e violentas explosões no seu peito já transtornado.

Chegou, finalmente, ao mesmo tempo em que o enfermeiro vinha com a má-notícia dentro de um envelope.

De tudo branco, excepto os óculos e a pele, o enfermeiro virou-se para o público diverso no pátio. Eis que chama o primeiro nome:

– Mário José Cuamba?

– Estou. – correspondeu, Maria, com uma voz em falhas.

– Aí está o resultado e ele terá alta ainda hoje.

Maria olhou para aquele envelope como quem contempla a morte em forma de papel. Antes do enfermeiro virar o corredor, correndo, depois de uma dezena de nomes chamados, Maria interpelou-lhe:

– Desculpa, dr.

A sua bata branca virou primeiro, antes de outros tecidos. A sua atrás, um corpo cheio clamava por detalhes:

– Então, qual é a medicação para o coronavírus?

– Coronavírus?! – assustou-se o profissional.

– Sim, a doença que eu e meu marido contraímos.

– Não, não é coronavírus, minha senhora. Teu marido teve crise de asma. Leia os resultados, por favor.

O homem virou-se novamente para o seu destino, mas antes de dar um passo, aconselhou-a:

– E vai a farmácia para ter a medicação.

Maria tombou no chão, antes de correr com o tronco na parede, feito um pincel de pintura. Entre lágrimas e sorrisos, ela agradeceu:

– Obrigado, Deus!

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