Lúcifer: o destino de “Um Homem de sorte”

A série Lúcifer faz parte das que desafiam a inteligência e questiona sobre convicções, mesmo as tem que ver com a fé.

Com a quinta temporada praticamente fechada, a apontar para a estreia em Julho ( caso a Covid-19 não se intrometa), Lúcifer é uma série que combina os géneros polícia processual, comédia dramática, crime, terror, mistério e fantasia.

Conta a história do anjo Lúcifer, tão bem interpretada pelo actor Tom Ellis que, entediado, decide abandonar o inferno para passar férias na cidade de Los Angeles, nos Estados Unidos.

O diabo vira dono de uma boate (neste contexto, uma discoteca luxuosa) e passa a vida bebendo, trocando de carros luxuosos, mantendo relações sexuais com muitas mulheres (e homens) e prestando favores a quem precisa.
Só que numa das noites, uma das suas amigas é assassinada e, a partir dali, ganha um súbito interesse por resolver crimes, encontrar os culpados e puni-los. O destino leva-o a virar consultor da polícia, e acaba por trabalhar com a detective Chloe Decker (Lauren German).

Sobejamente conhecido com a frase “diga, o que você deseja”, usa e abusa o poder de anjo que tem e hipnotiza quem se coloca à sua frente, arrancando os seus desejos mais profundos.

Encantado com a terra e com a humanidade, é perseguido pelo seu irmão, outro anjo, Amenadiel (D.B.Woodside) com a missão de o fazer voltar ao inferno. É neste quesito que Lúcifer desafia o seu pai, Deus, e todas as suas vontades, a começar com o corte constante das asas, porque acredita serem um castigo divino, deixando ficar a lição sobre a obediência(ou não) aos progenitores e as consequências que disto advém.
Com a sua ira, Lúcifer coloca em causa a forma como Deus toma decisões sem se importar com os efeitos (dolorosos) que causam.

Deve ser por isso que lhe valeram críticas da igreja católica, que chegou a pedir para que fosse suspensa da Netflix.
Seja como for, não deixa de ser cómica a ideia de que a decisão sobre o caminho a seguir é completamente da responsabilidade dos humanos, seres frágeis e facilmente manipuláveis pelo capital selvagem e pela luxúria. Um passo dado, ao que se pode ler da série, para não pisar a cidade prateada (o paraíso), mas o inferno.

A narrativa, enquanto se enrola na resolução dos casos intermináveis de crimes que abalam Los Angeles, encontra pontos de fuga para fazer uma reflexão sobre as injustiças sociais e a forma como os negros são tratados nos Estados Unidos, a discriminação e a violência policial.

Com a temática também à volta do amor, a série debate através da personagem Mazikeen (Lesley Brandt), uma fiel escudeira do diabo, como a dependência emocional e familiar pode ser um cancro nas relações humanas, como se os Homens fossem máquinas que devessem ser autónomas, auto-suficientes para viverem sozinhos no mundo.

Cada vez mais humanizado (afinal, o diabo não é tão mau) e com os demónios a invadirem o mundo porque estes já estão sem rei, nada mais resta ao Lúcifer que voltar ao inferno para domar as almas(perdidas?).

Daí percebe-se que a maldade não é uma predestinação, talvez uma escolha que se tenta mostrar ao longo do filme que se resvala por mais três temporadas sem um desfecho de um final feliz entre Lúcifer e a detective Decker, e abre espaço para o início da quinta temporada, com, naturalmente, o regresso do anjo à terra.

E é aqui onde a história desemboca, sobre o destino, que se liga à outro conto de fada. Acabo de ler “Um homem de Sorte” da autoria de Nicholas Sparks, tradução de Marsely de Marco Martins Danta, Ribeirão Preto, SP: Editora Novo Conceito, 2011.

Em 349 páginas, o escritor estadunidense leva-nos, uma vez mais, para a temática que mais domina, que é escrever sobre os sentimentos humanos, e, em específico, sobre o amor.

O autor, igual na obra “As palavras que nunca te direi”, mergulha a sua escrita em torno do amor de Thibaut, a juntar sobre este os vários elementos que fazem da vida de um jovem um processo tanto quanto de partida, e poucas vezes de chegada, como se o destino fosse o fim, talvez da felicidade, da vida, que se esgota em si na doçura do percurso.

A história se desenrola numa pequena cidade dos Estados Unidos, quando um jovem decide despir-se do fardo do passado, das lembranças do mesmo lugar, o mesmo quarto, a mesma vila, e decide buscar novos rumos.

A narrativa, que é marcada por uma série de monólogos e diálogos, inicia quando Thibaut, que tinha pertencido ao Batalhão dos Fuzileiros Navais, resolve seguir a vida, descobrindo novos caminhos depois de participar numa guerra, no Iraque. Seria o destino a mesclar o futuro de Thibaut, quando, numa das batalhas depara-se com uma fotografia e resolve passar a andar com ela no bolso.

Thibaut vê-se a salvo em muitos combates e contra-ataques, e começa a acreditar que a foto tinha algo de mágico que o mantinha vivo no meio de tanta catástrofe humana. Decide procurar a moça que estava na fotografia para lhe agradecer.
Então chega na cidade nova, na companhia de Zeus, seu cão, amigo de estrada, e decide manter-se por lá, até a “sorte” lhe bater à porta e ser contratado para trabalhar como treinador de cães na mesma casa que mora a jovem da foto, a Beth.
Ao longo dos capítulos, Sparks brinca e se enrola nessa história que se parece com algo de predestinação e tenta, através de vários momentos, encaixar o texto na perfeição que o universo cria sobre o destino de dois corações que se apaixonam.

Embora o autor se revele bastante obcecado pelas histórias de amor, acaba roçando nesta obra a forma como um filho pode determinar a presença de uma pessoa na vida da outra. E usa Clayton, um policial corrupto e que age fora da lei, para mostrar o quão um Homem pode ser tão miserável, ora quando este tenta decidir o futuro, os gostos, a forma de ser e estar do filho, ora quando ameaça todo o homem que tenta cortejar a sua ex-esposa, a Beth.
E, ao longo da obra, Nicholas mostra os lugares vazios de uma sociedade capitalista que se assegura através da coerção, jogos de poder e manipulação, como se os relacionamentos entre um homem e uma mulher fossem definidos por via do medo.

A temática resvala-se para a personalidade, jogos de interesse e capacidade de gerir as emoções. Embora Thibaut tenha conquistado a Beth e o seu filho em tão pouco tempo, neste livro, Nicholas leva-nos para um ponto mais alto sobre a ideia de aceitar perder, quando Clayton persegue Thibaut para colocá-lo na cadeia, usando o jogo do poder que sempre caracteriza as sociedades burguesas capitalistas.

Nesse momento, a história atinge outro ponto que se vai fazer sentir ao longo da obra do escritor estadunidense, que é a morte, e a forma como esta é dolorida para as pessoas que ficam, mas também, revela o lado desumano, quando torna a morte parte da solução de um problema, sobretudo para o entrave que Clayton representava na vida de Thibaut, da Beth e do filho.

E chegamos ao fim deste livro, que não vai para além da ilusão romancista que caracteriza o trabalho do escritor, ao, uma vez mais, arrastar a ideia de que existe um final feliz para os apaixonados.
Talvez, em algum canto funciona, mas, como dizia alguém, a sua obra contradiz o princípio básico que norteia a humanidade, a dor e final infeliz, porque a vida se revela dura e triste. Talvez tenha razão, Nicholas, a vida precisa de ilusões, e o final feliz se encaixa perfeitamente…

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