A angústia dos candelabros cegos

Um poeta curioso sente-se pela forma aguda com que toca as palavras. Um poeta é mais leitor que escritor, esta ideia encaixa no misticismo apresentado no seu texto, vê-se a palavra nua à espera de ser fecundada mas não é uma palavra vazia, antes é uma que se faz terreno na água, na nossa imaginação. O ritmo, o canto e encanto, tudo tem a ver com a fúria dos deuses nos dedos do poeta. A voz muda escala lugares destinados àqueles que fazem pés a sua retina. Há poesia em tudo quando se invoca as canções terrestres. Amário sabe disso.

A PALAVRA EM ÉFESO

Textos de Amário da S. A. Alberto

I.

Havia uma máquina silenciosa onde os seres minúsculos
Escutavam às vezes a pancada de Deus
Um rio de braço absoluto antiquíssimo passava no interior da máquina
E os peixes voltaicos ruminavam
Dizia-se que os peixes eram produto da saliva de Deus
Ou do eco
Dizia-se que as zungueiras eram cifras de dia
Elas embelezavam o eco as danças as criações da máquina
Dizia-se que a máquina tinha medo
E a noite era sinónimo de elegância e as zungueiras
Caçavam canções com os seus filhos no cio
E a cena de terem as bacias brancas nas cabeças brancas
Era porque protegiam-se da voz da noite
E os peixes primeiros passos nas máquinas:
Para tê-los era preciso uma pata muito magra
Incrédula: o que vem a ser então a noite senão os filhos
Das zungueiras na saliva de Deus?
Ou antes uma chama no riso das cidades?

E entre a fonte do mundo havia os mortos com uma taça de mel
Nas mãos violentadas pela terra
E pelo poema:
Ninguém ousava mergulhar com a cabeça toda
No turbilhão das cicatrizes:
O silêncio e o poema no sítio das árvores:
E ante as gramáticas a asma perdurava como símbolo de salvação:
Com um arbusto na cabeça: os mineiros devoravam a glória das águas
E dos barros e entre as linhas da palavra:
O diálogo dos violinos, a velha água a bocejar em cânticos de silicato
Como a fala nas pedras perdidíssimas:
O volante como sopro
e o corpo como as trevas dos fonemas no sopro
Após a queda dos reflexos do movimento
E eu como guerreiro carregava uma
Duas Três milhares de árvores nos poros fechados

Havia na noite cidades visitadas por zungueiras brancas
E as cidades eram todas elas brancas
(Prédios públicos muito brancos,
Semáforo todo branco: que brancura representava
A entrada de um entroncamento não sinalizado?
E o mais terrível era a taça branca no meio dos semáforos brancos)
E as zungueiras eram pedras e máquinas
Erguia-se uma foto uma torre só de ver as zungueiras
Em filas
A gritarem com seus panos de cor:
Há na noite um ventre repleto de cavalos sem espaços e sem murmúrios acesos
Noitenoitenoitenoitepancadadedeus-noite
No silêncio das zungueirasrosas em espaços
Impossíveis morrer de amor

Desenho de Joaneth
Desenho de Joaneth

II.

de todos os trabalhos inconstantes do mundo: escolho o de levantar
a estaca antes de apunhalar o poema pelas costas e se os dedos e as válvulas
tocassem letra fotogénica com todas as caricaturas por cima:
a mesmíssima coisa porque o perfume nos sonda ou nos conquista
invariavelmente. levanta-se muito cedo
para pôr-se o cú à mostra. e as musas muito mais centrais
do que as bandeiras musicais do mundo ante as grelhas impermeáveis
da visão: amálgama estendida sobre o vulto o vulcão sifilítico
como sentença primitiva légua ou letra no sexo: as musas como
seres independentes soluçam e tudo e tudo e tudo nasce coberto de pólen
em chamas: este é o sal da letra: como distingui-lo de tantos sais do mundo
separa-se o sal da letra de outros sais
como se separa o eco do sono pelo meio da vulcanização:
da perfuração da encadernação dos espinhos e dos espinhos temos apenas a flutuação
que é afinal uma coisa natural às letras
onde as vísceras terminam abertas num canal de tv:
estou em jogo com uma coisa na boca: onde estão as mãos?
este é o sal do sal da letra diz o personagem sôfrego na imaginação
e as pálpebras voltaicas com o sangue no meio
acenam a inocência: este é o saletra a sã letra
e as coisas electricamente turva
este é o vazio esta é a linguagem querendo perfurar
perfumes pré-cálculos primitivos este é o limo com um rosto
é o limo com todos os rostos amontoados na paixão
com todos os vidros:
sonhas com a boca entreaberta ante o canal das musas arrepiadas.
ouves o prognóstico da letra–––devoras-te:
––e se me colocassem numa forca por ser inútil e me questionassem:
de todos as putas do mundo:
pensaria em todas as mães do mundo e dançaria nu
rua abaixo como estrelas divididas em máximo múltiplo rebarbativo

***

Amário da S. A. Alberto, nasceu aos 22 de Outubro de 1995, participou em antologias em Portugal. Faz parte do grupo Tamborismo. Vive na Huíla, Lubango/Angola.

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