Há arte moçambicana dispersa na Europa

O AMBIENTE é calmo, silencioso. É segunda-feira, dia em que o Museu Nacional de Etnologia de Portugal, em Lisboa, não recebe visitas. No seu repositório, há arte makonde, feita no Norte de Moçambique por gente da etnia com o mesmo nome. Quando o debate sobre a restituição de bens culturais para as ex-colónias evolui para a necessidade de uma eventual inventariação do que há nos museus portugueses, esta instituição torna-se incontornável pelo espólio que detém.

Com uma vista privilegiada para o padrão dos descobrimentos, no pico da colina no Restelo, o edifício conserva no seu interior, desde a fundação, em resultado de pesquisas realizadas pelo etnólogo português Jorge Dias – primeiro director da instituição, criada em 1965 -, Margot Dias e Manuel Vegas, obras moçambicanas.

Entre 1958 e 1961 o etnólogo conduziu uma missão de pesquisa sobre a etnia makonde. Desse trabalho resultam quatro volumes de monografias, vídeos, filmes, áudios, livros sob gestão do Museu de Etnografia de Portugal. “A Margot não chegou a acabar o quinto volume d’Os Makondes”, diz Pais de Brito, numa matéria publicada a 6 de Agosto de 2016, no “Público” de Portugal.

Parte desse trabalho foi exibido em 1959, numa exposição intitulada “Arte do povo makonde”. Essa mostra, aliás, deu à luz uma equipa de especialistas que validou no sentido museológico ocidental, daí terem, mais tarde integrado a colecção do Museu de Etnologia.

É preciso recordar que “os makonde sofreram nos séculos IX e XX a colonização germânica, britânica e portuguesa”, conforme Catarina Simão, profunda conhecedora da história moçambicana, em parte devido ao trabalho que desenvolve sobre arquivos.

A história destes encontros coloniais – prossegue a intelectual que é co-organizadora do seminário sobre “Restituição do Património Cultural a Moçambique” – está representada nas recolhas de expedições etnográficas que hoje estão preservadas em diferentes museus, mas também nas colecções privadas de coleccionadores de arte, de instituições militares e de missões religiosas.

A arte do Norte de Moçambique, adverte Simão, “encontra-se hoje um pouco por toda a Europa e no continente, mas também na Ásia e na América”. Esta informação atesta-se no catálogo da exposição “Arte Makonde: tradição e modernidade” (Art Makonde, tradition et modernité), realizada em 1989, em Paris.

Por influência dessa mostra que teve lugar no Musée National des Arts d’Afrique et d’Océanie, organizada desde Moçambique em cooperação com França, clarifica Catarina Simeão, nos anos 1990 muitas peças makonde deram entrada no Museu do Quai Branly.

“Esse catálogo é hoje raro, mas deveria ser reeditado e posto à disposição, pois tem a resposta a muitas perguntas que se puseram durante o seminário sobre Restituição do Património Cultural a Moçambique [realizado em Maio de 2019] ”, acrescentou.

Conforme a descrição de Carlos Santos, autor do livro “Caçador de ossos” (Kapulana), “a arte makonde é representada pela música, dança e por objectos produzidos em palha entrelaçada, com que são feitos cestos e esteiras”. O escritor e pesquisador reconhece que no entanto, a mais conhecida é a escultura, em que o material utilizado é o pau-preto.

O que está no Museu de Etnologia

resulta de uma missão de pesquisa

A DESCRIÇÃO coincide com os trabalhos que encontramos no reservatório do Museu Nacional de Etnologia. Paulo Costa, director da instituição, acompanhou a visita, explicando. Esta colecção “chegou ao museu no âmbito do estudo da diversidade cultural e dos aspectos da vida social dos makondes”.

Margot Dias – prosseguiu – produziu filmes sobre a pesquisa, sendo que, em 1997, no âmbito de uma visita de Estado do então Presidente da República, Joaquim Chissano, recebeu das mãos do homólogo português, Jorge Sampaio.

Os filmes retratam os hábitos e costumes daqueles povos na época em que esteve no terreno a desenvolver a pesquisa como o seu esposo, Jorge Dias.

Paulo Costa, argumenta que o museu que dirige é tardio, comparativamente com outros da mesma natureza a nível da Europa, mas exemplifica a arquitectura moderna do mesmo como referência, “não tinha uma finalidade colonial, já tinha aprendido com o erro que os outros tinham cometido”.

É neste contexto que o retira do debate corrente sobre a restituição levantado pelo relatório “Savoy-Sarr” (ou Relatório Macron, como é também conhecido). Argumenta referindo que o economista senegalês Felwine Sarr e a historiadora francesa Bénédicte Savoy estavam a referir-se aos museus franceses que, inegavelmente, possuíam peças “adquiridas à força”.

O Museu Nacional de Etnologia – defendeu – conserva a arte makonde em resultado de trabalhos académicos, cuja natureza não poderia envolver situações de violência. Até porque – referiu – foram recolhidas no contexto de pesquisa etnológica.

Essa ciência – explica – é baseada na negociação e imersão no ambiente, o que pressupõe que cultiva-se relações humanas no decorrer da pesquisa, ou seja, presume uma relação de certa proximidade entre o académico e as pessoas que estão a ser observadas.

Paulo Costa

É no mesmo diapasão que diz que “ nalguns casos, não há dúvida que essa troca era desigual e nós sabemos de alguns. Mas não é o caso da colecção makonde, não é disso que se trata”.

Costa disse ainda que há abertura para se relacionar com o Museu Nacional de Etnologia de Nampula. Em 2013, contou, ambas entidades realizaram um trabalho conjunto, de parceria, em resultado de um memorando entre os ministérios da Cultura de ambos países.

Antes de nos deslocarmos ao museu, visitamos o catálogo colectivo on-line dos museus portugueses, designado MatrizNet, onde estão disponíveis mais de 100 mil bens culturais móveis.

Na opção pesquisa avançada do MatrizNet, seguimos os seguintes procedimentos: a) no campo museu, seleccionar a opção “Museu Nacional de Etnologia”; b) No campo produção, escrever a palavra “Moçambique” (sem colocar aspas). O resultado foi uma série de obras nacionais, as quais fomos observando na descrição à proveniência.

Uma situação que encontramos com regularidade, é que parte das obras, no campo da proveniência estava escrito: “Doação – Anterior proprietário desconhecido”. Situação que se difere de outras em que a descrição é completa.

Paulo Costa, que inclusive concebeu a plataforma, explicou que eram vindas do processo de pesquisa dos falecidos Jorge Dias e Margot Dias.

“Há casos em que, de facto, não se sabia do anterior proprietário”, disse. Porém, “outro facto é que ‘doação’, igualmente, usamos nos casos de obras adquiridas pelos pesquisadores com os fundos da missão, no terreno”, acrescentou.

Na mesma linha argumentativa frisou que a missão (1958-1961) é feita anteriormente a existência do museu.

Por outro lado, continuou, “aquele inventário é sumário e não está desenvolvido, apenas permite ceder ao último registo do movimento mas temos documento que atestam a data da recolha e preço da aquisição das obras”.

Paulo Costa reconheceu fragilidades da plataforma, prometendo que “para o caso makonde pretendemos revisar e colocar mais informação à disposição”, talvez em dois anos estará disponível. 

Nos anos 1990 a UEM iniciou um processo

CONVERSÁMOS com Maria Paula Meneses, antropóloga moçambicana, actualmente investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra com interesses de pesquisa nos processos identitários, as fracturas coloniais e a questão pós-colonial.

Até 2003 foi professora na Universidade Eduardo Mondlane, nessa qualidade integrou nos anos 1990, sob orientação do então reitor Narciso Matos, uma equipa que discutiu a restituição de bens culturais.

Na altura, recorda, a maior e mais antiga instituição de ensino superior no país tinha uma parceria com o Ministério da Cultura, que “estava preocupado com a nossa dimensão global”.

Maria Paula Meneses

Havia, prossegue, interesse em mostrar que o país tinha a sua forma de se expressar e que não ficava atrás de nenhum outro. Observa que, a dado momento, o ministério voltou-se mais para as questões domésticas e não avançou com a esta temática.

“Moçambique já começou a pedir, há muito, quer a lista das peças, quer o acesso (e mesmo devolução) de várias colecções”, revelou a antropóloga. Seguiu detalhando que houve pedidos endereçados a várias instituições europeias.

Maria Paula Meneses listou alguns exemplos de museus que detém arte moçambicana: British Museum (Reino Unido), O Musée de L’Homme, Quai Branly (França). E chama a atenção: há grandes colecções espalhadas por outros locais.

Sobre as obras, a antropóloga referiu-se a uma “salva de prata, oferta da Rainha Vitória Ngungunhane, assim como uma carabina que estão na Sociedade de Geografia de Lisboa, que é uma sociedade privada sem fins lucrativos, onde também estavam, até há pouco [tempo], os envelopes com a demarcação das fronteiras de Moçambique”.

Em Portugal há inclusive bocados de arte rupestre, das províncias de Manica e Tete. “O espólio é muito grande e nós apenas sabemos de algumas peças”, esclareceu.

A Europa teme este debate

A PERCEPÇÃO da antropóloga é que a discussão sobre a restituição incomoda a Europa devido às questões que irá levantar, pois a história moderna cobre o facto de ter um passado de roubo que “eles não querem assumir”. O velho continente, frisa, não quer que se fale deste assunto.

A restituição desses bens, entende Maria Paula Meneses, possibilitaria a desconstrução histórica de alguns objectos e grupos étnicos, cuja construção narrativa foi construída na perspectiva eurocêntrica.

“Permitiria conhecermos quem fomos, porque já não somos as pessoas daquele tempo e a interpretar, questionando a visão de quem as construiu de forma preconceituosa”, disse.

É neste sentido que não limita o debate aos museus, estende-o aos arquivos, universidades, associações e colecções privadas que não estão a desempenhar o seu papel.

A abertura destes para o público, possibilitaria, maior democracia no acesso à história para além de que essas mesmas instituições poderiam produzir pesquisas e divulga-las.

Meneses recorda que já houve algumas devoluções, como foi, por exemplo os ossos de Ngungunhane, que foi por via política; assim como arquivos que foram comprados à Torre do Tombo – Arquivo Nacional de Portugal.

A antropóloga, nesta questão, defende que não basta apenas reivindicar devolução, há que depois dar acesso aos que estão fora da cidade de Maputo. “Quem está em Lichinga não pode ir a Maputo ou a Lisboa para aceder a um arquivo”, afirmou.

Maria Meneses é da opinião que é preciso que se digitalize o que está nos arquivos nacionais, se estude e torne acessíveis, igualmente, as fotografias que estão no Centro de Formação Fotográfica, Arquivo Histórico de Moçambique.

O debate sobre a restituição de bens culturais às ex-colónias entrou em cena em Novembro de 2018, quando Emaunel Macron propôs a devolução de bens roubados no contexto colonial.

Para lusofonia, ganha outro ímpeto quando a deputada portuguesa Joacine Katar Moreira propôs à Assembleia da República de Portugal a implementação de um programa de “descolonização da cultura” e uma “estratégia nacional para a descolonização do conhecimento”, entretanto chumbada.

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