O realismo de João Paulo Borges Coelho

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A procura de uma resposta sobre o que é arte, tenho pensado que é a verdade, o retrato da nossa existência. Ou talvez, de facto, ela é que dá sentidos ao nosso Ser. Quem não tem aquela música? Aquele poema? Quem?

O realismo e o naturalismo são as correntes que à primeira vista sustentam a possibilidade de eu estar próximo de uma possível verdade. Mas olhemos para o abstracto. Não será que aquele aparente nada é um revelar, um denunciar de um vazio?

Aldino Muianga, Ungulani Ba Ka Khossa, Marcelo Panguana e Paulina Chiziane preenchem o naipe dos que, na prosa, a partir do realismo fantástico ilustram que a perenidade da arte reside na capacidade de pensar quem nós somos, a partir de factos concretos.

É arte quando retrata um tempo, bem nos recordou, há semanas o conjunto TP50, no espectáculo “No Tempo dos Tocadores”, em que revistou a nossa história recente através da música – já o tinha feito na homenagem ao escritor Mia Couto.

A colectânea “Gosto de Ler” da Fundação Fernando Leite Couto, lançou o seu segundo número, que é composto por quatro contos inéditos assinados por João Paulo Borges Coelho, que parece concordar comigo.

Numa linguagem acessível, simples, o autor constrói imagens as vezes nítidas, noutras confusas como, por exemplo, o enredo de “Anjo Voador”, primeira prosa da compilação, pela forma como constrói a narração. A contar sobre um embate de um chapa numa árvore, prende a atenção na menina que estava sentada na berma da via, estupefacta. Vendia frutas quando a sua banca foi arrastada da sua frente pelo condutor descontrolado. Numa das mãos, restava-lhe apenas uma laranja.

Noutro fio narrativo já tinha apresentado o jovem Zezito (José Sião), a caminho da faculdade, concentrado no trabalho que deveria entregar ao chegar, vindo de uma casa que o vê como a salvação da família, com a conclusão da licenciatura. Provavelmente terá frequentado a universidade nos finais dos anos 90 ou na alvorada do nosso século – quando ingressou para a academia ainda usava-se disket, o flash foi encontrá-lo.

Se a precisão do cenário é clara pela minúcia na descrição, a imagem da arquitetura do pensamento que estruturou o texto e o seu próprio sentido é que carecem de aturado exercício, devido ao esquema narrativo.

Num só conto encontramos mais de uma estória, que são apresentadas de forma peculiar. É como se o escritor registasse uma imagem e guardasse para na sequência trazer outra, sendo que mais tarde, volta a recuperar a anterior. As estórias da menina e do Zezito chegam ao leitor nesses moldes.

Nestes contos, o narrador emerge no psíquico dos personagens, que aliás são trazidos mais nessa acepção, num caminho já calcado com mestria por Fiódor Dostoiévski na sua vasta obra. É a partir do que pensam que os conhecemos.

A realidade e o fantástico, neste livro, confundem-se entre as imagens que o narrador distribui pelos parágrafos.

No segundo conto “Mares, o Mar” é um pescador e o seu universo que é explorado. O sonho de uma mulher de aventurar-se pelas ondas que, quando quebravam com a chegada do marido, para além dos mariscos, vinham carregadas de narrativas incríveis. Encantada, curiosa talvez, no fim, toma a embarcação e perde-se no mar, não sabemos se com o mesmo destino de “A Terceira Margem do Rio”, de Guimarães Rosa.

Conto de construção impecável, minimiza-se no facto de ser uma temática que já foi muito batida sob diferentes prismas.

Em “Pau Macau”, o último conto, narrador conta a história na primeira pessoa. A narrativa retrata a viagem do trabalhador de um madeireiro moçambicano, vítima de tráfico de madeira no espaço onde está recenseado para explorar. Porque o destino das torres roubadas era a China, o patrão, Mondzo – seu nome fictício, para não comprometê-lo – mandou-lhe para o gigante asiático.

O espírito de um tempo que vive coberto pelo véu do medo sustenta a posição do narrador que evita dizer nomes para não comprometer o amor à pátria, pois está incluso um tal “peixe graúdo”. A missão na China é para perceber quem é que manda, daquele lado. Contornou o responsável nacional para evitar represaria.

Com aquela nitidez fotográfica que Álvaro do Carmo Vaz imprimiu no romance “O rapaz tranquilo”, o leitor é levado a percorrer as ruas, vielas e parte de Macau que ainda preservam a passagem de Portugal, evidentes nos respectivos nomes. “ (…) já me encontrava hospedado (…) perto do cruzamento da Estrada do Repouso com a Rua da Alegria” ou então o “jardinzinho São Francisco”, ao se pode acrescentar “o agitado Rio das Pérolas”.

Sem ser o melhor de João Paulo Borges Coelho, vemos que apenas realidade foi banhada de lírica e voltou para nós em estado de arte.

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É licenciado em Jornalismo, pela ESJ. Tem interesse de pesquisa no campo das artes, identidade e cultura, tendo já publicado no país e em Portugal os artigos “Ingredientes do cocktail de uma revolução estética” e “José Craveirinha e o Renascimento Negro de Harlem”. É membro da plataforma Mbenga Artes e Reflexões, desde 2014, foi jornalista na página cultural do Jornal Notícias (2016-2020) e um dos apresentadores do programa Conversas ao Meio Dia, docente de Jornalismo. Durante a formação foi monitor do Msc Isaías Fuel nas cadeiras de Jornalismo Especializado e Teorias da Comunicação. Na adolescência fez rádio, tendo sido apresentador do programa Mundo Sem Segredos, no Emissor Provincial da Rádio Moçambique de Inhambane. Fez um estágio na secção de cultura da RTP em Lisboa sob coordenação de Teresa Nicolau. Além de matérias jornalísticas, tem assinado crónicas, crítica literária, alguma dispersa de cinema e música. Escreve contos. Foi Gestor de Comunicação da Fundação Fernando Leite Couto. E actualmente, é Gestor Cultural do Centro Cultural Moçambicano-Alemão

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