Nelson Lineu, o poeta que se faz do exílio

Por Lucas Muaga

A saudade, muito presente na obra de Nelson Lineu, mostra as virtudes de escrever no “exílio” – Maputo -, cantando a nostalgia em relação à Zambézia, sua terra natal.

É consensual que a poesia faz-se, dentre outros elementos, da solidão, como nas celas nasceram poemas célebres de “Cela 1” de Craveirinha ou um “De Profundis”, do irlandês Óscar Wilde, escrita na prisão de Reding, pendurados nas páginas de um livro. É esta uma das formas pelas quais as lágrimas dão lugar a literatura, essa expressão que expande a dor individual para o colectivo.

E o exílio de Lineu é diferente do de Craveirinha, por resultar de uma certa liberdade, de um cidadão que não viveu, como os seus antecessores, a dor da guerra, podendo migrar, de Quelimane para Maputo, de onde nasceu a saudade que caracteriza os seus textos, visível em “cada um em mim” e “asas da água”.

Se quisermos, salvo algum exagero, Nelson Lineu encara Maputo como uma terra de exílio. Talvez por isso, o seu livro torna-se uma expressão de saudade no seu todo. Escrever é como regressar à Quelimane, fá-lo como filho pródigo – é uma proposta.

Assim, a guerra é presente como um elemento físico e abstracto, como a infância, usada para falar da cidade de Quelimane, atingindo a dimensão divina do Rio dos Bons Sinais, que tal qual o Nilo no Egipto, é para Lineu, um dos maiores símbolos da Zambézia, podendo entender-se nos seguintes versos: “doeu/os adultos verem/a guerra se aproximar/e não esconderem/a cidade no rio”, num exercício de memória, trazendo uma solução contrária a da maioria, visto que “se a guerra voltasse/eu esconderia o rio”.

Ora, deste modo, Nelson Lineu mostra uma das maiores virtudes da poesia, tornar possível o que parece impossível, revelando a dimensão divina dos elementos da natureza, dos quais, o rio, que tal qual um ambientalista, vê na natureza a solução de todos os problemas do mundo, enquanto existir o rio, não se pode anunciar o Apocalipse.  Lineu revela algo como se fosse o medo que este um dia venha a desaparecer. O rio, para Lineu, é esperança, enquanto houver, o mundo pode ainda ser concertado.

O exílio de Lineu, não se manifesta, somente, enquanto um poeta zambeziano, que escreve de Maputo, cartas de amor à Zambézia, mas enquanto um adulto que, se pudesse, voltava a ser criança. Este discurso infantil, embora emprestado, está presente em muitos dos seus poemas. Aqui, o poeta é uma criança inteligente num corpo de adulto ou, talvez, nada é infantil, mesmo parecendo.

As crianças são como anjos, que emprestam a sua voz às coisas, que o Homem julga não poderem ter uma explícita intervenção, apesar de ser o mesmo que não consegue interpretar a sua linguagem. Enquanto poeta, Lineu dialoga com tudo e afirma, na absoluta certeza, que “a folha foi clara/o mistério da escrita/é escrever sabendo/a avó não lerá”, que “o chão lê/as palmas dos pés” ou “a ave está certa/a sombra no chão/é a respiração da folha”.

A infância de Lineu é mais clarividente que o próprio “Rio dos bons sinais”, que segundo o autor, foi um dos maiores responsáveis por este livro. Assim sendo, algumas brincadeiras de criança estão lá presentes, construídas como num ensaio fotográfico, veja-se que “a nascente/copia o trajecto na neca”.

 Assim, para Nelson Lineu, o “Rio dos Bons sinais”, é tão importante quanto o Jordão, no Oriente, o Amazonas, no Brasil ou o Nilo, no Egipto. Ao rio, repita-se, dá-se uma dimensão divina, ele é a metáfora do bíblico Alfa e Omega, “o princípio e o fim”, pois como o próprio poeta escreveu, “as casas na cidade/são cópias das casas no rio/aprendemos a decorá-las/com os peixes”.

A água não é somente um líquido que servirá para matar a sede dos animais, mas um líquido com uma localização geográfica clara, no sentido de quem escreve os textos, mas subjectivo, no sentido da intenção do seu autor (se para alguma coisa servir a literatura).

Lineu divide-se, como um pão que merece ser partilhado, deixa-se em versos e espalha-se ao mundo. Dai, já que o homem é o mesmo e, porque justamente na imperfeição reside a beleza da sua poesia, em “asas da água”, Nelson Lineu soletra os versos que sobraram desta divisão trazida em “Cada um em Mim” e é, provavelmente, esta a chave de ouro de um poeta que só ao futuro caberá o definitivo julgamento. Lineu prolonga-se, trazendo do lado poético da água e das aves, a metáfora de todas as coisas.

A água, este elemento que não se pode medir a proporção, por vezes, é também reduzida à ideia de gota e mostra que é também nas coisas minúsculas que reside a magia de uma poesia algo naturalista, que escreve como quem pinta paisagens, folha-a-folha, constrói seu verso.

As coisas pequenas, as mais insignificantes, são, em “asas da água”, grandes fios condutores de um tipo de poesia que, até aqui, caracteriza um dos jovens mais destacados de uma geração que se notabiliza com a actuação do Movimento Literário Kuphaluxa e da Revista “LITERATAS”.

Lineu escreve como uma arca no mar, que não se contenta que seja a água o seu horizonte e, nesta perspectiva, cria a sua própria ideia do mundo, deformando-o, como sugeriu o brasileiro Manoel de Barros, um dos poetas que estão assumidamente com ele, como moedas no bolso. “no leite/materno/eu bebia o rio/a mordida no peito/a mãe sabia:/o barco atracou

Como em “cada um em mim”, Nelson Lineu prefere um verso solto e simples, como as aves que continuamente são citadas em “Asas da água”. Lineu é curto e objectivo (se de algum modo pode se julgar assim um texto poético). Deste jeito, os seus poemas valem mais pela ideia e jamais pelo tamanho, pelo sentido hermenêutico e nunca pela arrumação das palavras. Deste modo, escrever “ninguém como eu/conhece o pudor dos insectos”, é-lhe já um poema completo. Não se pode dizer acabado, os bons livros são aqueles que a cada fim anunciam um recomeço.

Ora, esta saudade não está somente no sentido de ser Lineu, um “zambeziano” exilado em Maputo, está mais no sentido de ser um todo individuo, com uma história de vida particular, que conhece as suas paixões e, acima de tudo, regressa para a infância e, deste modo, vai crescendo com o verso.

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