HEMISFÉRIOS DA LUA: UMA CONVERSA COM SÓNIA SULTUANE

Sónia Sultuane nasceu em Maputo, em 4 de Março de 1971. É uma artista multifacetada: poeta, escritora, artista plástica e curadora. Trabalha como gestora de Comunicação e Imagem numa firma de Advogados e mantém colaboração dispersa na imprensa. A obra de Sónia Sultuane faz parte das antologias Universal Lusófona Rio dos Bons Sinais, 2016 e 2017, Zalala, 2015, Antologia dos Silêncios que Cantamos, poesia moçambicana, 2014 e ainda nas antologias Poesia Sempre, 2006 e Nunca Mais é Sábado, 2003.
De destacar o seu projeto Walking Words 2008, inserido em diversas disciplinas artísticas.
Sónia Sultuane foi recentemente homenageada no Congresso da Afrolic 2019, pela divulgação da sua obra no Brasil. Agraciada com o Prémio Femina 2017 – Mérito nas Letras: Literatura – Poesia em Portugal. O Prémio Femina é destinado às Notáveis Mulheres Portuguesas e da Lusofonia, oriundas de Portugal, dos Países de Expressão Portuguesa, das Comunidades Portuguesas e Lusófonas, e Luso-descendentes, que se tenham distinguido com mérito ao nível profissional, cultural e humanitário no Mundo, pelo Conhecimento e pelo seu relacionamento com outras Culturas. O seu talento artístico foi distinguido como “Escritora do ano 2014” pelo seu papel social na valorização das mulheres, no Festival Internacional de Poesia Mujeres Poetas Internacional, organizado pelo Círculo de Escritores Moçambicanos na Diáspora.

• Membro da AEMO (Associação dos Escritores Moçambicanos)
• Membro do Núcleo de Arte.
• Embaixadora do MIL (Movimento Internacional Lusófono – Moçambique) na cidade de Maputo
• Representante honorária do Círculo de Escritores Moçambicanos na Diáspora em Maputo.
• Membro da Comissão de Honra da Fundação Fernando Leite Couto.
• Membro honorário do Círculo de Escritores Moçambicanos na Diáspora.
• Membro da Associação de Fotografia de Moçambique.

Obras publicadas:
· 2001 – Sonhos. Maputo: Associação dos Escritores Moçambicanos.
· 2006 – Imaginar o poetizado. Maputo: Ndjira.
· 2009 – No colo da lua. Maputo: Do Autor.
· 2014 – A lua de N´weti. Santo Tirso: Editorial Novembro.
· 2016 – Roda das encarnações. Maputo: Fundação Fernando Leite Couto e Brasil pela editora Kapulana.
· 2017 – Celeste, a boneca com olhos cor de esperança. Santo Tirso: Editorial Novembro.

Para além da literatura eu e a Sónia temos outra coisa em comum: gostamos de fotos. Já nos encontramos várias vezes em sessões literárias, mantemos contacto mas nunca falamos sobre isso.

Alguns perguntam por quê escrevo. E eu vou com aquelas respostas filosóficas para mostrar que não sei. Ora, escrevo porque há bons autores na minha literatura e cresci a lê-los,inspiram-me pela vida e obra. Sónia Sultuane é um desses nomes.

Hirondina Joshua: É sempre uma felicidade quando o texto dá certo! É um alívio!
O texto é como a vida, nunca sabemos dele.

Sónia Sultuane: Nunca sabemos ou saberemos se um texto deu certo ou dá certo, o texto é como a vida uma grande incógnita, mas mesmo assim, atrevemo-nos a viver a sentir a construir e a acreditar. Um texto é a melhor versão e a pior versão de nós, pois somos seres complicados e complexos, dai buscamos toda a energia cósmica para energizar a nossa existência. Quando a expressão artística dá certo, então, ela revela o que esperamos ser o belo que existe em nós e de nós.

HJ: E se a poesia fugisse da metafísica?

SS: Se a poesia fugisse da metafísica não seria com certeza poesia. A poesia tem a obrigação ética de ser um deslocamento. Eu como poeta desloco-me em e entre muitos espaços físicos e metafísicos. Toda a minha busca e a minha ânsia espiritual obrigam-me a estar permanentemente em metamorfose, por isso sem o meu Ser poético inquieto, inconformado, não conseguiria nunca ocupar tantos espaços. A poesia não se ocupa de um único espaço físico e real, mas se desloca por outros espaços, senão a poesia seria pobre e medíocre se não se deslocasse.

HJ: A palavra embriaga.
O texto é um mistério para o próprio autor. Alguém poderia inventar a palavra, ou o que nela não há. Restaria ainda a droga da existência.  

SS: A palavra embriaga. A poesia é um mistério tantas vezes para quem a escreve. Dentro da poesia percorremos lugares que nem nós próprios muitas vezes os conhecemos ou sabemos o porquê. O facto de existirmos já é tão complexo, é uma embriaguez permanente, estarmos vivos, sermos seres existenciais deste universo tudo é um grande mistério. Quando trabalho com a palavra não o faço para embriagar o mundo, pois a minha consciência é colectiva, democrática e lúcida. Mas se a minha palavra, entretanto embriagar que se transforme em algo que instigue a reflexão dos meus leitores e também a minha. Eu não me perco em labirintos: a Lua é a minha chave. Sou com certeza a poeta que se embriaga com a magia da lua.

HJ: “Minha força está na solidão. Não tenho medo nem de grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite.” — Clarice Lispector.
É um ser em crise quem escreve?

SS: Depende da crise. A palavra crise é passageira ou transitória. Aqui na citação da Clarice Lispector, escritora brasileira que conheço muito pouco da sua obra e vida, imagino que a solidão seja um momento necessário e talvez transitório.

Estar sozinho também faz parte das nossas vivências e dos nossos aprendizados na vida, é uma forma de arrumar as ideias, limpar a mente e o coração, e deixar que novas formas e fontes de inspiração tenham espaço para chegar até nós. Como poeta e como mulher hoje estar em crise é uma oportunidade que agradeço sempre, pois só assim acontecem novas metamorfoses.

HJ: Se eu tivesse um heterónimo masculino seria violento e bastante crítico, odiado ou odioso. O poeta moçambicano Virgílio de Lemos tem um heterónimo feminino, a Lee-Li Yang.
Outro heterónimo; Duarte Galvão chama mais atenção pelas imagens fortes que traz nos poemas. Pode-se comparar um heterónimo com um personagem? Ou melhor um heterónimo é um personagem desfigurado, transfigurado? Vice-versa.

SS: Já me sinto um Ser humano tão metamorfósico, que não preciso de criar mais ninguém para dizer o que quero. O heterónimo é uma máscara. Não uso máscaras. Sou Sónia Sultuane, e ponto final. Em lugar do heterónimo, prefiro epítetos.  Não me cabe julgar a escolhas de outros poetas. Eles tem as deles! Eu tenho as minhas!

HJ: Sei que estou a colocar numa caixa quando pergunto coisas grandes como estas. Mas vou ousar: o que é um poeta?

SS: Ser poeta, saberias tu responder o que é ser poeta?! Sendo tu uma poeta também?! Com toda a precisão e o rigor que se espera que se responda a essa pergunta?!. Ser poeta alguém saberá responder  a essa pergunta?! Ser poeta deve ser, saber ler o coração para depois escrevê-lo, saber ouvir a alma para depois registar a/as suas mais diversas línguas, vidas, viagens, ser poeta deve ser louvar acima de tudo o belo, a vida, a existência humana, ser poeta deve ser tornar a poesia num lugar divino e hermético, onde também coabite a existência física, metafísica e metamórfica.

HJ: A tua poesia tem uma marca muito forte do corpo da mulher alguns dizem, mas eu diria do emocional. Há diferença para ti do homem e da mulher na escrita? Refiro-me na criação do texto. No texto como uma coisa que se confunde com o autor. Partindo do pressuposto da existência de espelhos no processo criativo.

SS: Não escrevo preocupada com a questão do género. Já chega a questão de ser africana, mas não negra, onde se coloca muitas vezes a minha mestiçagem e o facto de ser muçulmana, esse facto já é bastante para uma profunda introspecção. Tudo isso por si só já acaba também por influenciar o meu trabalho, daí a questão do género nem é pensada ou se torna uma preocupação.

Tenho a minha forma de sentir e de escrever, quem me lê com a mesma sensibilidade percebe o meu mundo. Muitas vezes escrevi e escrevo ou tenho a postura que tenho porque me senti provocada, como se você uma filha de segunda, num país num continente e num lugar que também é meu.

Não tenho medo dos espelhos pelo contrário eles me confortam. Estou a trabalhar para que o meu trabalho não me leve a um suicídio narcísico, prova disso é o projecto Walking Words que trabalho nele há mais se dez anos onde não há lugar para gavetas, prateleiras, bibliotecas, as palavras vão invadindo e irão invadir mentes. É isso!

*

Três poemas do livro “No colo da lua”:

Capa do livro “No colo da lua” de Sónia Sultuane

LIBERDADE
Quero ser a areia que cobre
apressada o corpo desnudo do universo
Quero assobiar aos pássaros
a música despida dos ventos
Baloiçar no luar despreocupado
fugir das mãos das árvores pregasse na terra
soprar o meu nome escrito na areia quente do deserto
voar abraçada nos dedos dos pássaros para bem longe
sem deixar marcas ou arrependimentos.

NASCI POETA
Embriagam-me os poetas invisíveis e imaginários
que me habitam quando durmo,
levito na sala do pensamento amassado,
as palavras dançam apressadas,
bebo o gosto dos versos adocicados,
nos meus lábios ainda guardo o gosto
do café amargo o último trago do cachimbo
do poeta desconhecido que me embalou,
na escuridão encontro a luz do arco-íris
para desenhar os poemas partilhados pelo cordão umbilical.

CAPULANAS
Amarro a vida aos nós do embalo de bebé
coso a minha fé com as linhas da mão,
atiro ao mar as sete chaves do baú
das capulanas já escolhidas
pois ainda quero voar distante
guardo os ensinamentos da minha avó
na alcofa esquecida da adolescência,
cubro-me com o manto da poesia
para que meus sonhos de infância não sejam roubados.

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