Poemas de Iner Muchine

Textos de Iner Muchine

Sob os panos do teu anoitecer

Flagro as mãos e seus pactos obscuros com a poesia. No poema, duas cidades erguem-se desmedidamente, contra os antónimos do sonho que em outras noites faz-me a cama. Os latidos de cachorros vadios escoltam o silêncio que jorra sobre os intermináveis córregos do meu corpo prostrado sobre os azulejos da vigília, com as mãos doridas sobrevoando os cacos das memórias que me chegam como que por uma caixa de ressonâncias. Os verbos impotentes acasalam-se, alcançam o alongado contorno da maçã onde a cárie pede para sucumbir. Os prumos ósseos do grito, do outro lado do evangelho e as mãos que se apressam a destrançar o pecado original. O medo entre roupas, como uma faca fria entre as coxas, carne sem alma por regressar. Não posso evitar! Uma ave às avessas atravessa os espelhos deste imperceptível morrer de luz. O lençol húmido, chicoteado pela culpa, entrega o suor ao lume que se principia a doer, às sombras que são vales a morrer pela cede de todos os homens. Trago o beijo na mão fechada ou uma flor, qualquer coisa que se pareça com pão para que nos alimentemos e morramos entre os arbustos da agonia como duas luas rasgadas pelo cerro dos Alpes Valaisannes. Os seixos da carne exposta ao sangue aceso gotejando como o céu despencando a pique na boca oca e os lábios que se apressam para qualquer ombro beijar e encontrar uma outra morte, um outro poema quente como axilas, aliás, como um crematório entre os espaços da renúncia em crescimento, porque a noite rebentando-se pelas costuras escuras deste delírio.

Desenho de Joaneth

Duas horas e cinco anos da madrugada

Danço na breve pincelada de luz que subsiste no camarim da minha vida. Danço com uma mulher que nunca amei, como aos olhos apetece um livro nunca lido. Movo-me calmamente como um pêndulo epiléptico, um barco a deriva no azul das águas. Não há angústia que abata as pétalas deste instante. A música ao longe, quase imperceptível, trai a gestação do silêncio no caudal dos seus lábios de lua. Seus olhos fecham-se como duas pétalas em queda sobre meus pés anteriores ao chão, meus pés anteriores ao mundo. Estremeço, susto-me, arfante, qual trapezista no alto sobre as cordas de um violino antigo. Ai, pensa, coração. Não me arrombes o peito agora. Permito-me, cada vez mais, náufrago nos braços desta mulher de preto, neste piso da madrugada empalidecido pelo nevoeiro. Seus lábios abrem-se como dois gomos se distanciam e o silêncio despenca morto: Diga-me, ainda que o silêncio te venha emboscar o murmúrio transpirado e magoado, há quantas mortes estou de viver contigo?

***

Iner Muchine é um escritor e poeta nascido e residente em Maputo, Moçambique. Nascido a 23 de Maio de 1997, seu primeiro contacto com a poesia foi aos seus 11 anos, com poemas de José Craveirinha “Grito negro” e “Poema do futuro cidadão”. Participou da antologia “Duas faces da mesma poesia” e tem poemas publicados em blogs, redes sociais, revistas, bem como Jornais.

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