Conto de Pedro Pereira Lopes

Texto de Pedro Pereira Lopes

Profecia em curto prazo

Ao Suleiman Cassamo

Crianças d’agora já nasce com ausência de respeito; grau absoluto autêntico de abuso: com três fio de pêlo já abre asas igual é veão; pessoa tem perna para namorar com chão; ntigamente nós sabia andar, andava com técnica, andava com guia de marcha, cansava pouco e chegava lá nos local onde ia; por isso que jovi agora só morre; não quer ouvir madala porque madala fala barulho; então faz uvido de mercado, como dizia patrão; e quando anda, sempre sonha acordado; rapagi que não escuta fica madjolidjo; rapariga só poder ser chicuachula; mulher de vila que não sabe quilibrar bidão grande na cabeça, como minina de cidade, que sobe em cima com levador, procura destino de tamanho que é desgraça; outros estuda parece não estuda, vida é só fumar soruma e beber nipa; ouve o que vou contar, é de verdade, conteceu lá perto da casa da fontenária, na rua doze

Aquele rapagi ficava tipo pai dele não é pai dele; era até pissoa bunita, mas paricia ter xipocos dentro: mamanô; bandonou escola porque chumbava muito; ele com chuva, ele chumbava mais e chuva chovia poco; chumbou sétima classe três vez, quinta classe dois vez; ele e caderno era inimigo, quando um via outro, os dois dava meia volta e voavam como estrela que cai; mãe dele zangou e não fez matrícula, mandou ficar em casa para pensar na vida; mãe dele disse assim: “já pensaste no que queres ser, quando fores adulto?” falou com voz de branco, com os mimo; se estava zangada, então era zanga de sol de manhecer, não queima nem acalora; aquele jovi já era adulto de fazer grávidas: podia gravidar filhas de dono até encher maternidade sozinho; mãe dele queria dizer madala, talvez; criança proveitou e ficou perdido de vez: de um vez para devez; teve portunidade, fez tudo descontrário

O rapagi bebia muito, cerveja ou às vezes nipa, também cabanga; bebia até noitecer, mas tinha xipocos bom, nunca nem um dia esqueceu caminho de casa: chegava e apanhava todos já dormiu, comia, comia tipo não era magrinho; comia mesa, comia panela, comia gelera; de manhã, mãe dele falava outra vez com mimo, pai dele só olhava, com dois olhos de vontade de querer pertar pescoço do rapagi

Um dia começou turno novo no trabalho e pai dele voltava muito noite; e foi antão que veio zanga feio, grande gravidade: esposa fez caril que marido gostava muito, caril de peixe mussopo; todos sabe que cabeça de mussopo tem ferramenta, até gil pinto cantou; todos sabe que cabeça de mussopo é de papá, chefe de família, mas aquele rapagi já tinha abuso absoluto autêntico; chegou cedo, comeu prato dele, comida tinha sabor de saborosa, ainda tinha fome, panela estava vazio, gelera electrolux só tinha água; rapagi abriu tigela de papá e olhos acenderam parecia é dia de ano novo; e comeu também cabeça de mussopo

Desenho de Joaneth

Quando homem grande chegou, tinha também bebido umas nipa aí nos esquina dele, viu mesa desarrumado: tigela estava vazio tipo mar quando moisés ia travessar; homem ficou ritado; ritação dele era ritação de gato, mostra unha e levanta cauda; mia parece vai acordar bairro todo; cabeça de peixe estava desmontado: os ferramenta estava espalhado, chave-inglesa lá, chave francês acolá, chave de fenda no chão e prafusos sem óleo; não tinha restado um mucadinho; nipa na cabeça saiu, seriedade do homem subiu; bater criança não ia diantar, acordar mulher, só para chatear, não era solução, foi dormir sem comer

Dois dia depois, pai daquele rapagi teve ideia para dar um correctivo nos abusos; saiu cedo do trabalho e passou a comprar peixe chicoa, seco, grande, um quilograma; naquele noite, jantar era couve; o homem mandou servir só duas colher de verdura para o filho; fecharam prato tipo jantar estava petitoso, depois ele próprio escolheu um peixe seco e mandou escamar; depois passou óleo por cima, o chicoa ficou a brilhar, bonito, tipo menina com pomada vaselina a ir na missa de galo; peixe untado parecia frito, pronto para se comer; chicoa entrou no tigela e todos foram dormir; quanto o rapagi de casa chegou, bêbado como noutros dias, foi logo pegar os prato; comeu couve mas couve eram pouco, não custou acabar; abriu tigela e viu chicoa inteiro, a brilhar; daí ele comeu; mordeu tipo era luta; lambeu os dedo, comeu tipo vinha de ano de fome; óleo escorria, cara ficou pintada, roupa ficou oleada, rapagi comeu com fome de ano de fome, ficou com sono e foi dormir

No dia seguinte, quase oito hora, rapagi foi acordado com pai dele; mãe dele gritava, já não tinha carícia nas palavra: “vais para um internato. lá ganharás juízo!”; pai dele só olhou, olhou desgraça desses rapagi que não gosta de estudar, que só sabe andar com cigar na boca e mãos no bolso das calça de jeans; mas não ficou a olhar longo tempo, rapagi foi a correr na casa de banho“Vovó velina inventou! é verdade mesmo?”

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Glossário
Madjolidjo: molwene, marginal, desocupado
Chicuachula: moça de má índole, vulgar
Soruma: cannabis
Xipocos: fantasmas, espíritos
Nipa: bebida alcoólica produzida pela destilação de melaço
Cabanga: bebida alcoólica produzida através da fermentação de farelo de milho
Mussopo: peixe-gato, panga
Chicoa: tilápia

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Pedro Pereira Lopes nasceu na província da Zambézia, Moçambique, em 1987. Estudou Políticas Públicas na Escola de Governação da Universidade de Pequim. Escreve poesia, contos, relatos de viagens, ensaios e publicou um romance. Publicou os livros infanto-juvenis O homem dos 7 cabelos (2012, Prémio Lusofonia 2010), Kanova e o segredo da caveira (2013), Viagem pelo mundo num grão de pólen e outros poemas (2014), A história do João Gala-Gala (2017, em com autoria com o músico Chico António) e O comboio que andava de chinelos (2019, Prémio Maria Odete de Jesus 2016). Publicou ainda a colectânea de contos o mundo que iremos gaguejar de cor (2017) e o romance mundo grave (2018, Prémio Literário INCM/Eugénio Lisboa 2017). Em 2019, em São Paulo, foi-lhe atribuído o “African Writer Excellence Award”, pela sua produção literária e contribuição na divulgação do pensamento africano.

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