Textos de Rômulo Moraes
I. a memória
sem dúvida a reencarnação
é o mais difícil dos fins
de que já se imbuiu o homem
o mais hilário também
que se houvesse um erro
na máquina de transmigrações
e por qualquer detalhe lembrássemos
das nossas vidas passadas
afogaríamos em memórias
em memórias de memórias
no turbilhão imagético o abismo
de vidas escorrendo incontroláveis
uma cascata
fluindo
pra dentro dos olhos
ser um pato que se lembra que foi homem
e se lembra que teve esposa
e que matou outros homens
na Guerra do Golfo
ser um homem e tentar não ter a psique
estilhaçada pela sensação
de por um segundo ser pato
ser um homem que foi menina e que foi senhora
que foi o sapo com o mais
lindo coaxar da Europa que já foi folha
de amendoeira
e caiu como uma pluma
sobre a superfície do lago
ser um lago que foi moça
e ouvir o som explosivo
da folha, que foi sino,
acariciando suavemente suas gotas
que cada uma delas
foi um universo inteiro
e todas as coisas alguma vez já foram
cheesecake de morango

II. a máquina
mencionei o erro na transmigração
e me parece óbvio que as almas
também podem se desviar
que elas podem escapar
dos seus trilhos normais, e perder as rédeas,
e ser indomáveis
as almas são feitas de líquido volátil
escravas normandas tecem umas às outras
as costuram a cada corpo sucessivo
coletam a substância celestial
com uma pinça e deixam cair
pingos desse óleo
estátua adentro
assim é que se acorda da inconsciência
com um choro e uma palmada
a luva de látex estalando na bunda
a água-benta ardendo, fervendo,
nos flocos de supercílio
o ar tem gosto de fécula nos primeiros dias
e o céu fica tingido de tangerina
às vezes uma fissura se abre no céu, um clarão
e as escravas acumulam clarões numa
bolha macilenta e fantasmagórica de luz, como
uma grande bola de cristal;
o Tempo as castiga cravando na cartilagem
das costas um anzol pra cada erro que cometem
enquanto o éter as inunda pelas chagas
os dilaceramentos se revestem de alegria
uma avalanche de alegria crua & americana

III. a metáfora
a metáfora é o primeiro sintoma do desarranjo
que um dia enfim se refinará
como esquizofrenia
surge em quem tenciona lembrar
das outras vidas que teve
das vidas que todas as coisas tiveram
um olho, por exemplo, que
pode muito bem ter sido
lobo, estrela, ouro, oceano
ou uma noite inteira
que de alguma forma já foi fogo
e assim por diante
* * *
Rômulo Moraes é escritor, editor e artista sonoro. Nascido em Juiz de Fora em 1996, formou-se em Comunicação Social pela UFRJ, onde atualmente cursa mestrado com uma pesquisa sobre música e fenomenologia. Seu primeiro livro de poemas Casulos (Kotter Editorial) será lançado ainda em 2019.