BENS CULTURAIS PILHADOS NAS COLÓNIAS: Devolver África para África

NO final do ano passado, o presidente da França, Emmanuel Macron, reactivou o debate sobre a devolução de bens culturais saqueados de África no contexto colonial. Intelectuais de diversos cantos do mundo consideram a acção legítima.

Esta história, que promete fazer rolar muita tinta, teve o seu “era uma vez” com a apresentação, em Novembro passado, de um documento designado “Relatório sobre a restituição do património cultural africano. Para uma nova ética relacional”.

O estadista galego recebeu de uma instituição especializada, a qual mandou fazer o estudo, a proposta de devolver os bens culturais espoliados em África, que teve quase todo o seu território à excepção da Libéria e a Etiópia, colonizado.

Benin, com efeito, poderá receber de volta uma colecção de bronzes, retirados do país no final do século XIX, no âmbito de uma expedição militar punitiva contra os reinos da África Ocidental.

Conforme o jornal Expresso de Portugal, “Macron anunciou ainda estar disponível para acolher na primavera de 2019 uma conferência entre parceiros africanos e europeus com o objectivo de debater o enquadramento e o destino das obras retiradas às suas origens durante o período colonial”.

O debate não é propriamente novo. Já tem barbas brancas, como diz a gíria. É uma conversa que andou silenciada e mantida como marginal. Mas esta exposição do presidente francês liberta as vozes periféricas que sempre defenderam ser preciso dar a César o que é de César.

Na Europa a questão é secular. O Congresso de Viena (1815), depois da derrota sobre Napoleão, discutiu sobre o retorno dos bens culturais pilhados pela França. Esse é apontado por especialistas como sendo o primeiro sinal no sentido da não exploração da fraqueza de outro para obter ganhos culturais e o da cooperação contra movimentos ilegais de saque.

A primeira manifestação institucional de grande abrangência é a Declaração dos Princípios da Cooperação Cultural Internacional, aprovada pela Conferência Geral (CG) da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), em 1966.

Carlos Serrano Ferreira, pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Hegemonia e Contra-Hegemonia, escreveu, num artigo sobre o assunto, que o documento “defendia a cooperação internacional no campo cultural na repatriação de bens culturais e contra movimentos ilegais e a imperiosidade da cooperação cultural internacional em geral”.

Ao longo de anos, explica o intelectual, foram-se desencadeando vários debates que apelavam ao “não roubo de bens culturais” em contextos de guerra ou colonialismo. A Convenção da UNIDROIT sobre Bens Culturais Furtados ou Ilicitamente Exportados assinado em Roma de 1995); a Carta de Atenas, de 1931, bem como a relativamente Carta de Veneza, são alguns exemplos.

Moçambique ainda sem posição

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 Silva Dunduro, Ministro da Cultura e Turismo, diz que o Governo está a reflectir sobre o assunto

DEPOIS de Macron, ficámos a saber que Angola está a elaborar uma lista do que se encontra fora no exterior. “Precisamos de fazer um levantamento exaustivo sobre as obras de arte angolanas que se encontram em Portugal, Estados Unidos, Alemanha, França, Bélgica, Itália e o Brasil”, disse Carolina Cerqueira, ministra da Cultura de Angola.

A reivindicação dos “palancas”, até Dezembro, ainda não tinha sido oficializada, até porque ainda estavam a trabalhar na comissão responsável pelo inventário.

Recentemente, João Carlos da Fonseca, Presidente de Cabo-Verde, disse que não estava equacionada a possibilidade de solicitar à Portugal a devolução do “rico património”.

Outras ex-colónias portuguesas se mantêm em silêncio. Numa entrevista exclusiva concedida ao “Notícias”, o Ministro da Cultura e Turismo, Silva Dunduro, anotou que o Estado moçambicano ainda não havia assumido uma posição sobre o assunto, estando o caso em reflexão.

“O Governo não assumiu ainda uma posição por ser um caso que carece de reflexão a vários níveis”, disse o ministro, tendo ainda afirmado que as atenções estavam mais viradas para a questão da escravatura.

O Instituto Brasileiro de Museus, contactado pelo Expresso, diz não ter sido feito nenhum pedido junto do Estado português para a devolução de bens culturais. “Mas diz que estão a ser reivindicados cinco mantos de índios tupinambás que se encontram na Dinamarca, França, Itália, Bélgica, Alemanha e Suíça e que saíram do Brasil no século XVII, na sequência da invasão holandesa”, lê-se.

Em Portugal, segundo o Expresso, a Direcção-Geral do Património Cultural (DGCP) diz não ter conhecimento de qualquer reivindicação para o regresso de obras de arte, peças etnográficas ou documentação de carácter histórico e acrescenta que não foram dados passos, no sentido de se elaborar uma lista com os objectos que poderão ser alvo de solicitações de restituição.

Imperioso devolver a nossa humanidade

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 “Devem devolver-nos a humanidade que nos foi roubada de várias formas”, Paulina Chiziane

No fim do primeiro sarau “Noites de poesia”, no Centro Cultural Moçambicano-Alemão (CCMA), em Maputo, conversámos com a escritora Paulina Chiziane sobre a devolução dos bens culturais para África.

Há muito que a autora de “O canto dos escravizados” – no qual fala do percurso dos africanos no nosso país e fora do continente – exige publicamente que o ocidente liberte o povo negro das amarras a que o destinou.

“Pagaram um dinheirão aos judeus, mas a África dizem somente que ‘estamos a pedir perdão’. Isso não é correcto”.

Paulina Chiziane defendeu que os objectos culturais devem ser devolvidos, mas não só isso, como também tudo aquilo que a África foi retirado à revelia. “Devem devolver-nos a humanidade que nos foi roubada de várias formas”, salienta.

Coincidentemente, no jardim do CCMA, um aparelho de som reproduzia “So what”, do trompetista norte-americano Miles Davis (para muitos um deus do jazz, um ritmo que nasce dos escravos africanos na América), quando a escritora referiu que os sistemas coloniais furtaram em todas as áreas da sociedade, sendo um dos exemplos as diferentes formas de arte.

Por outro lado, “podíamos falar do ser negro que foi animalizado através de vários dogmas que eles foram criando e que precisam de ser desconstruídos”, e “as bibliotecas do mundo cheias de livros construídos com preconceito sobre África”.

É um trabalho, prosseguiu, que vai levar milénios.

O desejo de uma das escritoras mais importantes da literatura moçambicana é que os europeus gritem aos “quatro ventos” e digam: “enganamo-nos! Os negros são tão seres humanos como nós”.

A invasão colonial dividiu grupos étnicos milenares, forçou, na sequência da Conferência de Berlim (1884 -1885), novas fronteiras. Por ignorância da cultura dos povos africanos designou-nos de bárbaros. Por isso, “têm de nos devolver a civilização que nos retiraram”, vinca a autora do “Ventos do Apocalipse”, ao mesmo tempo que questiona como seria possível pagar as pessoas que foram desenraizadas para servir a escravatura.

“Ocuparam nossa terra durante cinco séculos. Se formos a fazer as contas, aplicar uma taxa por dia, quanto é que pagariam? E de que dívida externa estaríamos a falar, se eles foram os primeiros a pilhar?”, salienta.

Devolução que poderá

esvaziar museus europeus

APESAR de apenas Angola ter declarado, ainda que de forma não oficial, que vai exigir a devolução de seus objectos, especialistas portugueses dizem que o assunto deve ser encarado com atenção.

Francisco Bethencourt, ex-director da Biblioteca Nacional de Portugal, ouvido pelo Expresso, disse que “o caso de Portugal tem passado debaixo do radar e antes de se tomar qualquer decisão é necessário fazer um levantamento dos objectos existentes, quando foram recolhidos, em que circunstâncias e o que os museus têm feito com eles”, diz o também ex-director do Centro Cultural Gulbenkian, em Paris.

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 Muitos museus europeus têm esse valioso espólio africano nas suas colecções

Sublinha que, “tanto quanto possível”, este movimento deve ser feito com a participação de investigadores dos países de origem e afirma que “a devolução está a tornar-se consensual, porque é a forma mais eficaz de virar a página colonial e de criar novas condições de parceria com os países soberanos e independentes”.

António Pinto Ribeiro, investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, defende que Portugal tem de se preparar para os pedidos de devolução de bens na posse dos museus, universidades e arquivos.

“O problema é grave, porque não temos uma lista de obras, que poderão ser dez mil ou 80 mil, e as instituições nacionais não estão preparadas para o que será um dos grandes problemas dos próximos anos.”

Entre os argumentos que sustentam a marginalização da devolução de bens culturais ao longo de anos tem que ver com o facto de alguns museus do ocidente terem nos objectos africanos os seus maiores atractivos. Em solo lusitano essa situação não se altera.

Uma das instituições apontadas como podendo ser das mais afectadas é o Museu Nacional de Etnologia, em Lisboa. O director, Paulo Costa, assume estar preocupado com o precedente aberto em França, sobretudo no que toca à reivindicação das peças ditas identitárias.

“Este critério tem de ser muito bem definido, porque pode acabar com os museus, como existem actualmente. Podemos admitir que estamos a entrar num novo paradigma, de que tudo tem de regressar ao local de origem, mas não podemos aceitar facilitismos”. Mas sobre as peças expostas no museu que dirige diz estar tranquilo: “Não temo pela origem das obras.”

Fragilidades dos países africanos

NO seu artigo, Carlos Serrano Ferreira destaca que as instituições internacionais embarcaram nesta preocupação há vários anos. Aponta que em Dezembro de 1973, a Assembleia Geral (AG) da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou a Resolução 3187, Restituição de obras de arte a países vítimas de expropriações.

No documento lamenta-se “a remoção por atacado, virtualmente sem o pagamento, de objectos de arte, de um país para outro, frequentemente como resultado da ocupação colonial ou estrangeira” e apelava aos Estados-membros à restituição imediata desses bens.

Lê-se ainda que “a restituição de obras faria reparar o prejuízo grave sofrido por países como resultado de tal remoção”.

Ainda no mesmo contexto, em 1983, a AG da ONU aprovou a resolução 3834, Retorno ou restituição de propriedade cultural para os países de origem, reafirmando o papel da restituição aos países de origem no fortalecimento da cooperação internacional.

Por fim, a 24 de Junho de 1995, em Roma, aprovou-se o Convénio do UNIDROIT sobre os bens culturais roubados ou exportados ilicitamente, com o objectivo de “facilitar a restituição e retorno de objectos culturais.

Para estabelecer mecanismos de negociação que respondam aos pedidos nos casos não abarcados pelos tratados supracitados, a 20° sessão da C.G. da UNESCO criou o Comité Intergovernamental.

A missão da entidade é a promoção do retorno dos bens culturais a seus países de origem ou sua restituição em caso de apropriação ilegal. Igualmente, cabe a ela procurar formas e meios de facilitar as negociações bilaterais, com vista à restituição ou devolução de bens culturais.

Especialistas observam que a fragilidade desta instituição e deste debate tem que ver com razões económicas. O argumento é que os países ocidentais têm pouco interesse no assunto, porque poderiam sair severamente lesados.

De acordo com a lista publicada pela britânica “The Art News Paper”, o Museu do Louvre recebeu, em 2009, 8,5 milhões de visitantes e o Museu Britânico recebeu 5,5 milhões de pessoas.

O Museu Britânico não cobra entradas, mas seu poder de atracção, somado aos outros dois grandes museus londrinos, o National Gallery e a Tate Modern é responsável em grande parte pela atracção dos 15,640 milhões de turistas recebidos por Londres, por exemplo, só em 2006.

Segundo Carlos Serrano Ferreira, Paris e Londres sempre estão nas primeiras colocações das cidades mais visitadas do mundo. “Há uma relação muito forte entre a presença desses museus que se auto-denominam “universais” e toda a riqueza envolvida e gerada com o turismo”.

A aceitação de devolução poderia significar abrir mão das receitas geradas pela atracção que os museus têm.

Por outro lado, devido a debilidades económicas dos países africanos, o transporte, manutenção dos bens culturais constituem uma grande limitação. Há falta de recursos humanos e de infra-estruturas adequadas.

Entretanto, especialistas defendem que as referidas obras, fora do contexto em que foram concebidas, são vazias de significado. O fim último, nesses casos, é meramente contemplativo.

*Publicado no Notícias de 27 de Fevereiro de 2019

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