O Cinema Brasileiro Pós-Golpe

Juliana Costa (Colaboração especial do Brasil)

Em 2016, o Brasil sofreu um golpe jurídico-parlamentar. Desde então, entre atônito e inconformado, o cinema brasileiro vem tentando reagir em suas estéticas e narrativas ao cerco que se fecha em torno dos avanços inquestionáveis dos anos que se seguiram à publicação da Constituição Federal Brasileira, de 1988 – que em meio a tantos abusos, teve seu aniversário de 30 anos parcialmente ignorado em 2018. Parte expressiva do cinema nacional lançado a partir de 2017 expressa, de formas mais ou menos conscientes, o momento de instabilidade e de profundas transformações que a sociedade brasileira (ou mundial, em contexto ampliado) está vivendo. Alguns filmes foram tomados de assalto em meio a sua produção pela atmosfera de desespero que paira sobre a politica brasileira, outros foram feitos sob encomenda para duelar com este contexto. Neste texto, como exercício de pensamento, vou separar alguns filmes deste período em dois tipos: filmes do golpe e filmes pós-golpe de 2016.

Na primeira leva, podemos pensar em filmes como O Processo (2018), de Maria Augusta Ramos. O Processo é filho do golpe. Por questões óbvias, foi lançado em 2018, mas poderia ter sido lançado no mesmo ano de 2016. Um filme que ainda tenta explicar o que não se explica, que opera na linguagem do que foi o golpe, na esfera jurídica das argumentações e comprovações sobre o que foi o processo kafkaniano do julgamento da presidenta Dilma Rousseff. De certa forma, legitima o teatro do congresso nacional pelas vias opostas, mesmo que denuncie as artimanhas escalafobéticas da direita brasileira para destituir uma presidenta sem crime comprovado. Busca a linguagem (imagética, jurídica, midiática) do golpe para descredibilizar o golpe. Estes filmes de registros históricos – e ai também temos Excelentíssimos (2018), de Douglas Duarte, entre outros – são documentos importantes para o futuro e mesmo para o presente – sobretudo para exportação, para denunciar à comunidade internacional todo absurdo contemporâneo da realidade brasileira – mas não acredito que expressem o sentimento da nossa época. Tudo é claro, jornalístico, carregam em si o verniz da credibilidade, o mesmo verniz utilizado pelos golpistas. São, de certa forma, filmes otimistas. Que acreditam que o teatro do absurdo possa ser desmascarado, desvelado. Como se tudo já não estivesse exposto, deflagrado. O  que parecem ignorar é que tudo é sabido, os que deram o golpe sabem que foi golpe, os que quiseram o golpe, sabem que foi golpe, todos somos cúmplices. A imagem em tamanho ampliado, na tela de cinema, nos torna ainda mais cúmplices, testemunhas da história. A quem se destina? Aos correligionários indignados? Aos possíveis oponentes ignorantes? À história? Como se ainda fosse possível convencer alguém do que de fato aconteceu. Os filmes pós-golpe já sabem que isto não é possível, que vivemos no tempo do absurdo e é a linguagem do absurdo que vai dar conta do que ainda está por vir.

Em O Processo, José Eduardo Cardozo, advogado de defesa da presidenta Dilma Rousseff, diz em pronunciamento oficial: “Do direito de defesa da Presidenta da República, foi tirada a substância para se manter a forma. Porque forma garante aparência. […] Dizem que não há golpe porque o rito está sendo observado. Observar rito não significa substância do direito de defesa. Observar rito significa dar aparência e legitimação aparente a algo que não tem legitimidade.”. Assim, a forma que garante o rito e que ignora a substância, é a linguagem e a estética do golpe. Talvez por isso, os filmes da leva pós-golpe ignorem a forma de modo escancarado. Se a forma deu o golpe, vamos explodir a forma. Se a narrativa tenta dar credibilidade ao absurdo, o absurdo pode dar credibilidade à narrativa. Por isso o atordoamento, o aniquilamento, o estilhaçamento da narrativa, da imagem, de qualquer possibilidade de dar uma forma ao horror que se abateu sob o país nos filmes que seguem. Desta segunda leva relaciono filmes como Era Uma Vez Brasília (2017), de Adirley Queirós, A Cidade dos Piratas (2018), de Otto Guerra, Sol Alegria (2018), de Tavinho Teixeira, Os Sonâmbulos (2018), de Tiago Mata Machado, todos vistos no Festival Cine Esquema Novo, de 2018, em Porto Alegre.

Outro ponto em comum entre os quatro filmes citados: todos estão longe do poder. A tônica de Era uma Vez Brasília é a imobilidade. Em oposição aos filmes do golpe, que assistem ao espetáculo pelo lado de dentro das coxias e dão a ilusão de que algo pode ser feito por ali, o espectador da fábula distópica de Queirós está preso a uma cadeira de rodas, ouvindo o teatro grotesco de longe, sem possibilidade de intervenção. As poucas possibilidades de resistência estão fora do palácio. É um filme de urgência, de desespero e de autoconsciência. Todos os personagens são marginais, presos de regimes semi-abertos. Nada funciona, as máquinas pifam, se perdem no tempo e no espaço. Onde estamos? Na Brasília de Juscelino Kubitschek ou na masmorra de Michel Temer? Estamos no tempo do aniquilamento.

Talvez o paralelo mais exato do atordoamento de Era Uma Vez seja o da cena final de O Desafio (1965), de Paulo César Saraceni, em que o protagonista desce uma ladeira vazia, sem rumo, sem objetividade, sem possibilidade de ação (não à toa dois filmes de anos imediatamente posteriores a golpes de estado). Como em Os Sonâmbulos, em que a imobilidade torna-se possibilidade de suicídio, onde na voz de um personagem: “não há nada de real pelo qual vale a pena lutar.”. Os corpos estão inertes, andam em fila para o abatedouro. Personagens se auto-mutilam porque se reconhecem no horror: “O fascismo é uma imagem turva de nós mesmos.”. Tudo está às claras, o que acontece na luz é o indecente. A resistência (ou a desistência) é subterrânea, escurecida, emudecida. Um mural do grotesco, do acúmulo, o mosaico sem sentido, se forma na parede para em seguida ser destruído. A destruição torna-se a única estética possível. Como os carros que queimam em Brasília (à la Weekend à Francesa de Godard), como a bandeira incandescente dos sonâmbulos sem causa. Uma chamada a guerrilha, ao exercito popular, mas ainda sem direção certa. O inimigo está solto, nós estamos presos, mas temos armas. Nos quatro filmes, as armas. É bala no pente para todo o lado, pegue em quem pegar. Se você está na frente, é o alvo. Talvez essa ideia de armar o cidadão, como quer o (des)governo pós-golpe, não seja assim tão má. Armas armas armas, tiros sem mira, é como um a metralhadora do absurdo que A Cidade dos Piratas se apresenta. Contra o teatro da real politik, o humor atirando sem piedade. Diferentemente da penumbra de Era Uma Vez e Os Sonâmbulos, a comedia underground de Otto Guerra, explode na tela em todas as cores e os sons da resistência kamikaze de quem não tem nada a perder. Assim também é Sol Alegria: exuberante, iconoclasta, desbocado. Um chamado ao desbunde que afronta. Sol Alegria é um road movie precário, uma ode ao cinema da urgência. Os personagens, piratas corsários do apocalipse, sabem que têm pouco tempo antes de tudo ir pelos ares. A vida queima aqui e agora, não há amanhã possível. O amanhã pertence ao inimigo, precisamos explodir hoje.

Curiosamente, a estética da destruição presente nos quatro filmes não amortiza ou paralisa. Ao contrário, chama à ação. Conclama o espectador a se unir à única saída possível: o enfrentamento, seja ele para o lado que for. Também não é coincidência, que, com exceção dos Piratas anarquistas do Tietê, os outros três filmes desta leva incendiária (que ainda dará muitos frutos) possuem como plano final, personagens encarando a câmera. Em dois deles, são mulheres, que nos fixam o olhar e parecem dizer: “venham nos pegar, estamos prontos.”

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