Mtukudzi e seu pedaço de eternidade

Venâncio Calisto

23 de Janeiro de 2019 (19:40)

Oliver Mtukudzi morreu. Acabo de engolir uma pedra, agonizo e ninguém se importa. À minha volta estão todos cegos, uma multidão atarefada num país de lesmas. Ao WhatsApp todos os louvores em gratidão a esse gratuito milagre. E é desse Liviatã tecnológico que se me chega a desgraça: “foi-se o homem mas ficou a obra”.

Estou no chapa e viajo sentado (mau augúrio), ao meu lado, uma mulher grávida, que não tira os olhos do monte Binga que lhe saciou o vestido, deve estar a ver se o bebé não se perde dentro dela, a mulher é feita de sinuosos labirintos – penso. O corredor é um mar de gente, de odores e olhares desavindos, uma chuva de ódio e fogo que se atira impiedosamente contra todos os que tiveram a sorte de ocupar um assento. Queimo mas resigno, amanhã os 40º C continuam…

“Será que a morte vai acabar um dia?” é Castigo dos Santos a comentar o infortúnio que Dadivo José acaba de anunciar no grupo de WhatsApp. Minha angústia é agora maior do que nunca. O que se pode ainda filosofar sobre a morte? Haverá resposta a infinidade de questões que a morte nos coloca? Que sentido tem a existência se a qualquer momento tudo se esvai? Hoje faz três dias que não sei nada dela, absolutamente nada, instalou-se um vazio entre nós, não será isso também igual a morte?

O corpo magro e esguio de Mtukudzi sempre me lembrou uma serpente de chapéu e guitarra na mão, talvez por isso sempre o tive como uma lenda. Conheci-o na infância e rapidamente habituei-me as suas constantes visitas, era como se fosse um parente próximo ou um vizinho com o qual partilhávamos o sol aos pedaços em cascos de coco. Dava-nos o bom dia, quase sempre, nas colunas do rádio cassete do meu pai, mas também era frequente cruzar-se com ele nas ondas da RM. E sua voz roca e penetrante foi sempre o consolo para as nossas dores, e alegria para as nossas festas. Não me lembro de nenhum “Dezembro” que não ceiou connosco.

Mas a lembrança mais viva que me vai ficar para sempre é a da primeira vez que o vi cantar ao vivo. Foi há dois anos na sala de palestras da Escola de Comunicação e Artes da Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, aquando duma conversa que os estudantes do curso de Música promoveram com artistas estrangeiros que vinham participar dum festival. Em jeito de Surpresa a banda “Khanyisa” tocou a célebre canção “Todii” e o Mtukudzi rendido a encantadora interpretação daquelas jovens artistas pegou o microfone e extasiou-nos a todos. Ainda sinto o arrepio, uma electricidade me percorrendo as entranhas.

Era mágica a voz, o dedilhar e as composições de Oliver Mtukudzi. Não há quem não se extasie, é inevitável o arrebatamento e ainda mais a revolta que as suas canções de carácter social provocam na consciência de todos nós, africanos que vivem sujeitos a tirania e a barbárie perpetrada por aqueles que deviam combatê-la. Por esses e tantos outros feitos e qualidades, Mtukudzi tem um pedaço de eternidade, um lugar especial na memória de todos, os de hoje e das gerações futuras. A morte nunca o poderá calar, o brilho da obra rompe qualquer breu.

Desço do chapa e tropeço na vertigem que vai se tecendo a minha volta. No Patrice, como em todos mercados de Maputo, é assim: um amontoado de gente que vai, outra que vem e mais outra que não vai nem vem, um movimento que se mistura com a inércia. As senhoras têm a esperança estendida ao chão, tomate, cebola, bananas, em suma, toda a fé aos molhos, amanhã a criança que lhes pende ao colo terá o pão para silenciar o choro que se junta as milhares de vozes, buzinas e todo tipo ruídos que reclamam vida a este lugar mortífero. O pesadelo continua e soa mais real ainda à luz do crepúsculo. O dia se foi e com ele o Mtukudzi.

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