O homem de chapéu enganou-me (2)

A TESTEMUNHAR as mil maravilhas que o brasileiro Caetano Veloso cantou sobre a sua Rio de Janeiro, lá no alto as favelas exibiam-se, distantes. Um dilema instalou-se em mim: contemplar a praia do Leblon ou não dar costas a um retrato de degradação da vida humana, similar a de muitos lugares do mundo, sem que ninguém se revolte.

É lindo para fotografia, as cores tão distantes revestem alguns edifícios visíveis. O contraste não disfarça o vermelho dos tijolos sem reboco. A escrita, infelizmente, ainda é incapaz da mais sincera realidade – sequer obedece a quem escreve, simplesmente segue o caminho que lhe apetece.

O rio que corre sem se permitir perder o verão está na Roda de Samba. O mesmo Veloso, na sua Bossa Nova, disse que essa cultura é triste. E é porque culto para libertar as lágrimas da alma. Levanta o povo. As pessoas – às centenas, aos milhares – numa roda à volta de um pequeno grupo que canta as suas vivências e outros imaginários, alegram-se tanto e geram uma energia, uma áurea tal, nos seus padrões Juliana.

A Roda de Samba transforma-se de águas limpídas para a coloração de surra doce, recém-sugada do coqueiro pelo “Nkemih”. Ou talvez não, porque diverso, multicolor: todas as cores estão ali. Discutir preto e branco é redutor. É um atraso que o mundo ainda não tenha ultrapassado essa questão.

Por esses lugares rondava a mente da figurinha de chapelão, fato preto, três vezes maior que o seu corpo e uns sapatos do tipo Mc Roger. Subitamente, surgiu na multidão, que se juntou numa das entradas para o Moro da Conceição, no bairro Saúde, zona Centro do Rio de Janeiro.

Não dá para ver seus olhos, essa parte da face está coberta. Batoteiro, ele observa-nos.

Com os pés naquele chão, que foi o primeiro Quilombo da “Cidade Maravilhosa”, não me contenho, a curiosidade toma-me. Respiro, recuo alguns passos para desmascará-lo. No alto da Pedra de Sal, o senhor exótico aprecia a “galera” em volta da Roda de Samba em plena segunda-feira.

A negrinha de Sergipe, a morar em Recife, pele linda, parece luz e o seu falar melódico, de uma espontaneidade engraçada, distrai o homem do chapéu ?. Deleita-se quando vê a pele reluzente, negra, de rosto enigmático, que a cada olhar é mais encantador. Ela cumprimenta as amigas, elas trocam abraços, carícias, sorrisos, olhares.

Ao ouvi-lo falar, o homem de chapéu ? recordou a musicalidade de João Gilberto e deu-se por satisfeito por ter descoberto um dos caminhos para a genialidade daquele indivíduo. A sua gente fala “cantando”. João mudou a estética da música brasileira, impôs seus sentidos. E o jazz, galã do states, também foi lá apropriar-se das suas frases para incorporar no seu vocabulário e, desta feita, revestir o tecido sonoro daquela música negra com uma textura fina.

Façamos de contas que abrimos um parênteses, caro leitor, a cultura negra que se reinventou no norte da América encontrou um passado similar, entretanto, submetida a outros imaginários – a experimentar outros sentires, fechamos os parênteses.

O homem do chapéu ? recordou-se que comprou uns CDs de Chico Buarque, Elis Regina, Gilberto Gil, São Jorge e umas colecções de jazz, só clássicos! Louis Armstrong, Billie Holiday, Nat King Cole. Lamentou não ter conseguido um Oscar Peterson, Art Blakey acompanhado pela Jazz Mensengers. Imagina-se sentado numa poltrona a ouvi-los, com um copo de uísque, enquanto escreve.

Reencontra-se com este plano submerso na força de: ele não! Ele quem? Um idiota, respondeu alguém ao lado, como se ouvisse o pensamento do homem de chapéu ?.

Institivamente persegue a negrinha que caminha para a roda. É a Roda do Samba, olhos para baixo não pode perder os passos das meninas. Cantou na roda e foi para um cantinho, onde respira aquela neblina dos versos do Chico, o Buarque, na Carioca. Ele observa aquele lugar multicolor.

Na Roda de Samba há coro. Há o rufar dos tambores – não os do Mapiko que embriagaram José Craveirinha -, a voz da roda prossegue quando a banda baixa.  É uma comunhão.

No Uber, meus olhos não saíam da janela para ver se as nuvens persistiam nos joelhos do Redentor. Menos aborrecedor foi perceber que o homem do chapéu ? me tinha distraído.

lEONEL2

Acredito que pequenos gestos podem mudar o mundo. Encontrei no Jornalismo a possibilidade de reproduzir histórias inspiradoras. Passei pela rádio, prestei assessoria de imprensa a artistas e iniciativas. Colaborei em diversas página culturais do país. Actualmente sou repórter do jornal Notícias. A escrita é a minha arma”.

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