Sangare Okapi: Ainda não me considero um bom vinho

Por Elton Pila
Conversa com Sangare Okapi trazida pelos pés d’“Os Poros da Concha”, seu quinto livro que reafirma o erotismo e a intertextualidade como marcas da sua poesia

“Os Poros da Concha” (Cavalo do Mar, 2018) chega-nos sete anos depois de “Mafonematográfico Também Círculo Abstracto”. Podíamos talvez esperar mais, porque, conta Sangare, não vai atrás dos textos, a poesia acontece-lhe. E aconteceram-lhe estes poemas que fazem o conjunto da nova obra. Temos, em 54 páginas, um sujeito poético não muito distante dos livros anteriores. Tem – também nestas páginas – lugar cativo o erotismo e a intertextualidade. No entanto, a intertextualidade não está escancarada como noutras obras, vai exigir do leitor um exercício de memória.

Lançado o livro, ao poeta chega-lhe a penitência – as entrevistas. Esta aconteceu entre as aulas da Escola Secundária Francisco Manyanga, onde se faz professor de Português, porque “os poetas precisam ter uma profissão”.

Sangari capa
A capa do livro

É parte da chamada Geração Oásis. Como isto contribuiu para a sua poesia?
-Eu sempre tive dificuldades de aceitar que Oásis fosse uma geração, porque falar duma geração é muito complicado em literatura. Digo isto porque não é o facto de a idade ser a mesma que nos torna parte da mesma geração. Penso que através dalgumas linhas podemos encontrar autores que viveram uma determinada época e a sua obra literária nos remete a outra geração. Podíamos pensar num Rui de Noronha que sendo relativamente mais novo do que os irmãos Albasini se integre na mesma geração. Afastando esta hipótese geracional, preferia falar de um grupo de jovens entusiastas que se juntam no fim da década de noventa.

Éramos mais de 30 jovens de diferentes disciplinas que nos conferiram o ecletismo. Tínhamos pintores, escultores, prosadores, poetas, jornalistas. Para além da Revista [Oásis] havia tertúlias, conferências, inclusive jantaradas. Agora, se perguntar qual era o objectivo, direi que o objectivo era simplesmente publicar, em minha opinião. Não se esboçou nenhum ideal…

Estético?

-Sim. Por isso digo que é dificil chamar geração, porque talvez não comungássemos da mesma linha estética.

Disse, no dia do lançamento do livro, que os prosadores ficam à espera das Grandes Estações. Grandes Estações podem ser percebidas como grandes acontecimentos, grandes momentos que fazem grandes temas… Pelo que os poetas esperam?

-A poesia tem algo especial. Não espera de coisa alguma, faz acontecer. Ela é subtil. É como o sorriso ou o choro duma criança. A poesia é algo epifânico.

Olhando para esta analogia que faz com o choro ou sorriso duma criança, recupero uma pergunta que talvez esteja cansado de responder. Porquê escreve?

-Não sei por que escrevo. A poesia acontece-me de forma subtil. Se dissesse que escrevo para um leitor-alvo, talvez estivesse a mentir. Nos últimos tempos, autores há que escrevem, quando não têm nada para escrever. Escrevem tendo um foco. Há escritores caça-prémios, cowboys da literatura. Há escritores que tentam imitar a Escola Coimbrã, que escrevem para serem estudados nas Universidades. Nem com uns, nem com outros me identifico. Escrevo como forma de liberdade de consciência. Escrevo como um acto de fascínio, de alegria, de esperança.  Mas por vezes acaba se apresentado como penitência. Pelo facto de estar, aqui, a ser interrogado sobre aquilo que escrevi com alegria.

Deixemos de lado a ideia de penitência, falemos de esperança. Esta ideia remete-nos a nuvens cinzentas, ao desagrado em relação a algumas coisas…

-Veja só, hoje [conversamos na segunda-feira] os preços do transporte vão agravar. E a população vai agravar as suas agruras. Basta olhar para o rosto de cada indivíduo que se encontra na paragem, desenhas o país que tens. O reflexo da tristeza, talvez não por falta do próprio valor para se fazer ao transporte, mas por falta mesmo do transporte.

Há que reflectir sobre isso também na poesia?

-Continuo a dizer que a poesia para mim, como dizia Paulo Leminski, é um inutensílio. Não vejo um espaço de funcionalidade. Talvez como terapia, onde cada um possa se encontrar e reencontrar na medida em que vai usufruindo. O mesmo texto pode, hoje, sugerir-me uma ideia de grande alegria. Mas, no dia seguinte, dar outra orientação.

Uma constante nas suas obras é a intertextualidade. Mas, enquanto noutros livros as referências estavam escancaradas. Neste, “Os Poros da Concha”, estão dalguma forma escondidas. Queria forçar o leitor ao exercício de memória ou era medo de soar repetitivo?

-Eu não sei se há medo do repetitivo. O que acontece ao nível destas referências, desse legado memorial, é o encontro com os membros da minha família literária. Eu não tenho medo de dizer isto, tenho minha família literária bem identificada. Quando se pega a minha obra, eles estão lá de forma transversal. Desta vez, quis o destino que não os expusesse, porque não pedi permissão. Noutras vezes, peço permissão para conversar com eles.

“derrete a cera branca entre as colinas

Activa uma vela hirta se impõe no vale

do corpo em cratera avultando linhas

e há quem nu as colhe à flor da tua pele”

Pág. 51

Só consegue escrever ancorado nestas memórias?

-A memória é parte importante daquilo que é a minha escrita. Vejo-me na encruzilhada de não ter ainda conseguido superar estes fósseis. Mas não tenho medo deles. Se calhar um dia possam se distanciar, mas duvido.

Disse há pouco que a poesia lhe acontece. Quando escreve os poemas não tem a ideia do livro que pretende escrever?

-É engraçado. Se digo que a poesia acontece é que há sempre uma pequena linha que vai jogar como premissa. Depois há que vestir a bata, as luvas e pegar nos utensílios de labor poético. A parte mais difícil não é o momento em que ela acontece, é o momento em que vai se processando até que ganhe a maturidade suficiente para que se diga isto pode sair.

Para este livro, o título veio depois, quando fui ver os poemas todos. Houve a veleidade de convidar os meus amigos, Lucílio Manjate, Léo Cote e Aurélio Furdela, para que conversássemos em torno do livro para perceber se podia sair ou se havia um fio que nos orientasse a este título. Conversamos, sugeriram ideias, a sequência.

Já agora, o Lucílio Manjate está de parabéns, porque foi o curador e, se não fosse por ele, talvez o livro não saísse da gaveta.

Sangare-Okapi
Sangari Okapi

Escreve na página 44. “Um poema épico é pátrio e delgado/ convocando fundo a flama anunciada/com o turbilhão na voz acre e aguda/ espingarda tem ou não época na vida”. Faz sentido que ainda se escrevam poemas épicos, hoje?

-Sempre. Se não, não estaríamos num território, num espaço.  É importante que escrevamos neste género. O épico no sentido de exaltar os valores identitários, em todos os sentidos. Em particular, este poema aconteceu-me no sentido de exaltar a independência.

Refazendo o último verso, a poesia tem ou não época na vida?

-Dizia um escritor, já não me lembro o nome, que a poesia é uma arma carregada de futuro. Eu penso que isto diz o que pretende saber. A poesia tem futuro. A poesia é futuro, presente e passado.

Já agora, porquê não deu título aos poemas?

-Os poetas que têm colocado título aos poemas, e fazem-no bem, são indivíduos incríveis. Muitos poetas pintam a casa, mas dentro dela não se sabe o que tem. Por vezes, vemos a casa pintada por fora, temos a impressão de que é muito bonita, mas quando penetramos vemos que é um desastre.

Era mesmo por medo de colocar um título que não condissesse com o poema?

-Era o medo de pintar a casa e falhar na mobília…

Noutros tempos, os seus poemas levavam títulos. É a maturidade que lhe faz mudar de fórmula?

-Maturidade? Ainda não me considero um bom vinho. Mas direi que há, já agora, uma consciência do fazer literário que não é o mesmo do princípio.

Disse, em entrevista ao Pedro Pereira Lopes, que a poesia não vive sem dicção. Vem daí o lirismo nos seus poemas?

-Sim. A poesia deve, primeiro, ser falada, cantada, decantada. A poesia deve ter a sua tonalidade. Veja que depois de escrever um texto fico alguns dias distante dele. Depois volto a ouvi-lo, na minha voz.  É a esta dicção que me refiro, é esta musicalidade que se pretende. Tenho textos que podem ser poemas, mas quando falta dicção, lanço ao lixo, ao invés do luxo que é o livro que por vezes publicamos.

o teu silêncio e sono e marco

grassa o teu bramido assim alto

como a força da seta no arco

que bate no coração aberto

sou todo açúcar e pão erecto

Pág. 48

Disse, nessa mesma entrevista, que uma das formas de fazer poesia é visitar outros Museus: Cemitérios. De que Cemitérios fala? Voltamos, outra vez, à ideia de memória?

-Tem a ver com memórias. Mas quando me refiro aos cemitérios, me refiro às bibliotecas que temos e aos livros que há muito se encontram fechados. Quem reedita Rui Knopfli? Quem reedita Sebastião Alba? Quem reedita Aníbal Aleluia? Quem reedita Isaac Zita? E outros. Estamos, aqui, num mundo de autores que precisam ser revisitados como legado que nos deixaram, como um valor precioso para a construção da identidade cultural. Os miúdos não conhecem os autores, porque ninguém os edita, logo ninguém os lerá.

E as constantes referências na sua poesia são uma forma de manter alguns poetas vivos, enquanto não são reeditados?

-Vivos não, porque nunca estiveram mortos. Eles continuam vivos através das linhas que nos deixaram.  E se calhar outras manifestações que ficaram como espólio.

Sentimos uma forte carga de erotismo nos seus versos. Qual é o encanto disto para a poesia?

-A mulher é um país. É só descobrirmos as suas grutas que levemente descansaremos. Gosto de contemplar o corpo das mulheres, de todas as mulheres, cada uma com características próprias.

Enquanto existirem mulheres, não faltarão livros de Sangare!

-Evidentemente.

“atalhados sentidos na erecção do caule

maduro o fruto adocicado entre as coxas

ou húmido o musgo na bexiga que a mão

te alcança nua e secretamente vegetal”

Pág.18

Tentou escrever algumas peças de teatro. “Pereto de onti” foi até distinguida. Mas diz que nunca encontrou gozo pleno como dramaturgo. Na poesia encontra este gozo pleno?

-Sim. No teatro havia uma dependência incrível. Era da escrita para a representação, havia um forte sentido de colectividade. Na colectividade há sempre uma interdependência que, se não encontras colaboração, ficas num lugar de desânimo total. A poesia não tem este condão. Ela quer e deve acontecer, acontece sem que precisemos da colaboração do outro.

Este “Os Poros da Concha” é uma homenagem à Simone de Beauvoir…

-Quando estava no Festival Literário em Minas Gerais, Brasil, recebi a trágica notícia informando que perdi a minha Simone de Beauvoir. Como deve saber, Simone de Beauvoir é o nome da mulher de Jean-Paul Sartre. Eu sempre me considerarei um Jean-Paul Sartre e a minha mulher Simone de Beauvoir. É uma homenagem à minha Madame Beauvoir.

Nota Bibliográfica                             

Sangare Okapi, pseudónimo de Cardoso Lindo Lhongo, publicou Inventário de Angústias ou Apoteose do Nada (2005); Mesmos Barcos ou Poemas de Revisitação do Corpo (2007); Era uma Vez… (2009); Mafonematográfico Também Círculo Abstracto (2011); Co-organizou a Antologia Inédita – Outras vozes de Moçambique (2014). Foi distinguido com os prémios Revelação FUNDAC, Rui de Noronha (2002); Prémio Revelação de Poesia AEMO/ICA (2005); Menção Honrosa no Prémio José Craveirinha (2008).

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