Elida Almeida: a vida ensinou-me a inventar mundos

Aos 16 anos, a sua vida, aos olhos do mundo, resumia-se a ir à escola e à igreja. Daí o espanto da comunidade onde Elida Almeida vivia, ao ver-lhe grávida. Mas ela enfrentou a situação. Se bem que já antes, a sua infância tinha sido em meio de dificuldades no interior da Ilha de Santiago, em Cabo-Verde.

A intérprete veio a Maputo participar na 8ª edição do Festival Azgo 2018. Era uma manhã de sexta-feira, quando a encontramos. O frio de Maio espreitava. Entre o cinzento das nuvens, um sol amarelo insistia na sua graça. De óculos de sol, pretos, sorriso nos lábios, enquanto conversa com o seu manenger, Djô da Silva, Elida Almeida está sentada, no alto do palco. E a conversa continua descontraidamente.

“Não foi fácil encarar as pessoas porque em Cabo Verde ainda fica-se chocado com uma adolescente grávida”, contou, já sentada connosco, a alguns metros do palco. Recordou que durante a gestação e depois foi vítima de olhares carregados de decepção por parte de pessoas que ela admirava.

Até porque integrava o coral da igreja. “O padre e a irmã ficaram decepcionados comigo”, conta com o olhar meio esquivo, embora não altere o semblante. Anulou a matrícula por um ano e foi um período de muito aprendizado.

A música, já nessa altura era parte da sua vida. Destacava-se no coro, mas ainda não dava por isso. Para Elida Almeida cantar na celebração era “uma forma de seguir Deus”, diz, gesticulando as mãos.

O nascimento do filho mudou o rumo da sua vida, pois, criada num contexto de pobreza e de muitas carências, a residir com a avó, no interior, onde, conforme referiu, a energia eléctrica só chegou no ano passado, teve que buscar bases para sustentar o seu rebento.

“Desde que ele veio muita coisa mudou na minha vida. Comecei a ter foco porque passei a ter um dependente”, contou Elida Almeida. Mais tarde o seu destino levou-a para a Comunicação e Multimédia, na universidade. Direito era o sonho, mas não cabia nos seus magros bolsos.

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Elida Almeida

A falta de justiça no mundo é uma das preocupações que move a sua vida, por essa razão queria ser advogada, na esperança de dar algum sentido de justiça à vida das pessoas. Neste ponto encontramos um caminho para justificar a crítica social e ao estado das coisas patente nas suas músicas.
 

“A minha música tem um lado crítico, para além do amor, de forma a despertar as pessoas sobre alguns problemas de Cabo Verde”, anota Elida Almeida.

Por outro lado, ter crescido em meio a privações e depois experimentar, graças à música, outras possibilidades, colocam-na num lugar privilegiado que a permite uma análise com maior propriedade sobre o estado das coisas.

 A sua infância, conta, foi sem bonecas, sem televisão, e sem os adereços que moldam o crescimento de qualquer menina. Um aparelho de rádio a pilhas reproduzia, especulamos, com regularidade, “Sodade”, de Cesárea Evora.

As brincadeiras eram de improviso, dependentes do que havia disponível à sua vista. No seu jeito de crianças, acabavam inventando, com aquelas brincadeiras, seus mundos.

Cantar, obviamente, era parte. Em rodas, que reunia os primos e vizinhos. Cantarolavam horas a fio, até a noite cobrir, por absoluto, a luz do dia. Naturalmente, a música foi se tornando parte da sua vida.

“Faziamos bonecas de trapos, a nossa brincadeira era inventar coisas e cantar”, recorda Elida Almeida, e o fio da memória a levou, inclusive, a concluir que “começou aí o meu lado criativo”. Até porque, prossegue, “toda a vizinhança e família se juntava e tinhamos que improvisar qualquer canção a descrever-nos uns aos outros”.

Contou que, durante a infância, adolescência, até pouco antes de Djô Silva descobrir o seu talento, ser cantora não fazia parte dos planos.

Partir do tradicional

para criar outro lugar

A sua música, logo no primeiro álbum, “Ora Doci Ora Margos”, mostrou-se diferente, sob ponto de vista estético. A sua voz, maior que o tamanho da jovem, logo cativou e ficou. As histórias não seriam “X” da questão se ela não tivesse a sua idade, 25, em que se acredita que ainda não há uma consciência sólida sobre o mundo. Mas, como se sabe, a experiência vai sempre pesar mais.

A partir de ritmos tradicionais da sua região, Elida Almeida cria outras possibilidades para a sua música. Ela inclui o ocidental, que passa pelo pop, algum funk. Sua intenção, confessou, é mudar a forma de fazer a música tradicional cabo-verdiana, sem, no entanto, retirar-lhe a essência, o húmus, o tutano.

Em parte considera que tal se deve ao facto de consumir muita música, sem discriminação.

“A pessoa compõe o que consome e a vida entra a mistura”, disse, tendo exemplificado que “posso estar a ouvir Bruno Mars e a sua música me dizer algo e eu incorporar na minha, não se controla”.

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Nesse caminho, acredita, torna-se possível atrair o público da nova geração que não tem nenhuma relação de identidade com o que é tradicional. Por apreciar a música de Cabo Verde, defende que a mesma não pode morrer, mas, igualmente, não se pode limitar ao passado, buscar outros horizontes.

“Não deixa de ser nossa música por termos incluído algo de fora”, diz Elida Almeida que pretende “inovar e fazer a diferença”. Mas reconheceu o papel do seu produtor no seu processo de criação.

Encontra-se neste momento a divulgar “Kebrada” e o trabalho conjunto que está a desenvolver com a brasileira Flávia Coelho, que igualmente esteve no Festival Azgo deste ano, depois de, durante três anos, ter estado em vários palcos do mundo a fazer espectáculos.

O segundo disco, embora retrate o arquipélago, foi feito longe de casa. “Eu posso escrever em qualquer parte do mundo. Por exemplo, para este álbum compus algumas músicas na França, outras no Canadá, enquanto a viagem seguia. Quando a música viesse eu a colocava no papel”, revelou.

Djô Silva aproximou-se, sinalizou o relógio. Já era hora de subir ao palco para o ensaio. Enquanto a nossa equipa se retirava, a sua voz povoava o recinto. Poderosa, segura e madura de mais para a sua idade.

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