Barcolino um incoveniente morto que insiste em estar vivo*

Se nas obras “A legítima dor da Dona Sebastião” (2013) e “Rabhia” (2017) Lucílio Manjate escreve sobre mortes de facto, no livro “A triste história de Barcolino”, o protagonista é um morto – não – morto. Não é, propriamente, um fantasma, embora se trate de uma assombração.

Desta forma a morte volta a estar presente na obra de Lucílio Manjate e a ocupar um papel central na narrativa. Barcolino, o protagonista, é um pescador, mas o seu pescado são as gentes do Bairro dos Pescadores, arredores periféricos da cidade de Maputo, onde se desenrola o enredo e se desenvolve o caos.

A recordar-nos o “Regresso do Morto”, de Suleimane Cassamo, Barcolino é uma figura que leva a questionarmo-nos o que é estar vivo? Ele problematiza o estar vivo porque circula entre ambos. E ainda é obrigado a provar que está realmente vivo quando toda a comunidade já o quer morto de facto.

O conflito entre a vida e a morte, ao contrário do que ocorre em “O último voo do Flamingo” de Mia Couto, conforme constata o ensaísta Francisco Noa1, não estimula a esperança na vida pós-morte. A observar a expectativa dos moradores do Bairro dos Pescadores pelo finamento do pescador entende-se que na visão da comunidade o óbito é a certeza do fim da existência do indíviduo, se não não torciam pela morte de facto de Barcolino a fim de acabar com as suas interferências nas suas vidas.

Há na novela, género escasso no nosso sistema literário, um mito sobre Barcolino, segundo qual ele seduz os seus pares com um (en)canto – tal qual as sereias ou a emanjá (dos brasileiros). Neste ponto o escritor inverte outros mitos que postulam que tais habilidades são detidas por mulheres.

Estas cenas confirmam um postulado de Francisco Noa, referindo-se a romances moçambicanos que selecionou para descrever as tendências da ficção (prosa) nacional, particularmente o romance. Segundo a qual há “uma lógica outra na redimensionação do mundo assente na transcendência em relação ao que pode ser palpável e verificável e que desafia as convicções e experiências do leitor”2.

A dicotomia entre o tradicional e o contemporâneo reflecte o conflito dos nossos imaginários que oscilam entre a lógica ocidental – que domina a nossa forma de pensamento – e a africana3 – que herdamos da nossa cultura.

Michel Foucault4 nos sugere que o autor, na literatura, é entendido como um conjunto discursivo homogéneo e singular. Com efeito, o uso regular da temática morte no corpus literário luciliomanjetiano acaba o constituído uma das marcas do discurso pelo qual este autor poderá ser identificado.

“A triste história de Barcolino” é um texto que retrata o nosso imaginário colectivo, a medida em que a dicotomia metafísica e realidade coabitam sem conflitos, a excepção do curto diálogo do padre José com a coordenadora das acólitas, Isaura, que veremos adiante.

Na nossa humilde opinião, este livro cumpre com uma das funções de uma obra de arte, que é a de reflectir o pensamento e o imaginário de uma certa época.

Tal se evidencia na utilização de termos como “Parte Incerta” – que na novela é um bar -, por exemplo. Sabe-se que o mesmo foi introduzido ao vocabulário corrente pelo discurso jornalístico à reboque da retórica política pretendendo se referir a um lugar que (quase) ninguém conhece, mas que a sua existência é uma certeza.

É uma obra que nos recorda o que já foi amplamente repetido, a realidade, nalgumas circunstâncias, consegue ser mais fantástica que a própria fantasia. A “Parte Incerta” é um lugar que se comunica connosco – sociedade -, no qual residem (ou, sendo mais concreto, residiu) gente incontornável no status quo recente da nossa história.

A função acima referida encontra-se ainda manifesta na introdução do manhambana Alexandre Chaúque na narrativa, que é um dos jornalistas culturais que constitui referência para a nossa geração. Assim como o homossexualismo do filho de Alfredo.

Na segunda parte do livro, que está divido em duas, as ironias do destino, os traumas e os seus efeitos são matéria-prima para a construção da personagem Cantarina, (nome que prende a atenção porque há duas possibilidades de significados: assim foi concebido em alusão ao facto dela cantar bem, “o padre José descreve a sua voz como um soprano lírico”, ou a querer suscitar Nkata – esposa em algumas línguas bantu), esposa de Barcolino.

A mulher que, quando moça, “tinha muitas carnes para ser catequista”5, nas palavras dos crentes da congregação do bairro, foi vítima de circunstâncias turbulentas desde a infância. O tio Desde, seu pai, a abandona com a sua mãe e ruma para a África do Sul, nas minas. Queria pescar minerais, suponho. Na igreja, que era suposto ser espaço de acolhimento, tolerância e perdão – pelo menos de acordo com a imagem que nos deu a conhecer assim sugere – é vítima da inveja, é lá que é orquestrado o galanteio de que resulta um amor – valor primário propalado pela igreja, é certo que não apenas nesta dimensão homem-mulher – que, na verdade nunca existiu e, na ignorância cede a sua virgindade a um vigarista.

A comunidade da congregação a rejeita. Só permanece algum tempo devido a protecção que recee do padre, até que um dia acaba desistindo ela mesma.

Quando se olha para os diálogos a volta desta parte da história, o escritor nos oferece uma dicotomia na interpretação. Há duas visões, duas culturas a olhar para os mesmo factos e a coabitar o mesmo espaço. Um guiado pela razão ocidental e outra, diríamos, na mesma lógica ocidental, metafisica-africana.

O padre José, brasileiro, busca explicações sustentadas na razão para fenómenos que para os moradores do Bairro dos Pescadores encontram no aculto, no sobrenatural o seu entendimento e argumentos. Ora vejamos:

“…quando se inscreveu para ser acólita, a Isaura, coordenadora das acólitas, advertiu ao padre para não a deixar entrar no santo grupo, a Cantarina é neta de uma curandeira…”. A título de exemplo a coordenadora recordou um inconveniente vómito que se deu no dia da primeira comunhão, quando ia receber a hóstia:
“a Cantarina expeliu pela boca um peixe-cobra? Eram três metros de peixe padre, três metros!

– Não era peixe, minha filha, muito menos cobra. Era simplesmente vómito e estava claro que no dia anterior a Cantarina tinha comido muito peixe….”

Por outro lado este livro nos coloca a reflectir sobre a inserção social, a aceitação do diferente. O modo como a trama nos é oferecida, conduz-nos a imagens de uma comunidade pobre, que ganha a vida através da pesca, essencialmente, e que é extremamente conservadora.

Tal se nota quando, na igreja, como já referimos não aceitam a Cantarina e, mais tarde, quando o Alfredo, carrasco da primeira – como que a pagar pelo mal que terá feito no passado – é pressionado a resolver, o que consideram desvio comportamental, que se desenvolve na sua família6.

Temos em José Adeus, um intérprete de sonhos que desmente o pai da psicanalise Sigismund Freud, que defendia que “o sonho é, na essência, um desejo reprimido durante a infância”7. Para este personagem da novela o sonho é revelador do futuro.

A trama que nos prende nestas 70 páginas não se resolve no final, como acontece em “Rabhia” (2017) e “A legítima dor da Dona Sebastião” (2013), embora em ambos a resolução seja obra complicada.

Enfim, temos neste livro um Lucílio Manjate está a investir em narrativas que desafiam o leitor a criar um desfecho, até porque antes disso, há um ponto por esclarecer. Quem é o narrador?

*Texto lido na cerimónia de lançamento da obra, no Centro Cultural Português – Camões em Maputo, no dia 09 de Maio

1 NOA, Francisco, Tendências da actual ficção moçambicana: “A Letra, a sombra e a água: ensaios e dispersões”. 1 ed. Texto Editores, 2008, p. 12.

2 Ibid., p. 10.

3 Que a nosso ver tende a ser marginalizada.

4 FOUCAULT, Michel, O que é um Autor? 3 ed. Passagens, Portugal, 1992.

5 MANJATE, Lucílio, A triste História de Barcolino, Cavalo do Mar, 2018, p. 43.

6 Cf. MANJATE, Lucílio, A triste História de Barcolino, Cavalo do Mar, 2018, p. 60-65.

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