Celebrar a vida do mordomo

 

Franzino, cabelo crespo e curto, donde espreitavam alguns fios brancos, marcas do tempo respirando a poeira mundana. O homem estava sempre vestido à rigor. Sempre bem-disposto. O mordomo, na verdade, era uma espécie de “faz-tudo” no palácio do rei.

A sua presença era sinónimo de bem-estar, a sua agilidade era de um género escasso, quase que já, naquela altura, não se encontrava casualmente. Era quase milagre. Homem de tamanha lealdade que até se tornara confidente do rei.

Nos dias, que não foram poucos, em que sua majestade serviu banquetes para outros homens de honra, o cortês, franzino, de estatura média e já com o andar debilitado era quem cuidava de tudo, no mínimo detalhe. Era algo de se invejar. Por essa razão recebeu várias propostas aliciantes, mas se via na qualidade de um súbdito enviado pelos seres celestes apenas para servir àquela família real.

A sua esposa e os seus rebentos somente queixavam-se das habituais ausências e da hora tardia, no pico da noite, que se fazia à residência, nas traseiras do palácio.

A consorte lamentava, sobretudo, das suas faltas de comparência nas obrigações conjugais. As vezes, o homem até se esforçava, mas debalde, decepcionava no desempenho. Contra o cansaço não há remédio, senão o repouso.

– Porquê me despiste? – indignada, perguntava ela – tiras-me a roupa para nada, sabes o quão frustrante isso é? Eu sou uma mulher, tenho necessidades.

Resignado, ele apenas virava-se para o outro lado, cobria o lençol e, numa voz quase nula, desejava bom descanso a sua parceira, pois sabia que na madrugada seguinte, antes mesmo do sol lembrar-se que precisa voltar ao ofício, estará em pé, para servir ao seu rei.

Certo dia, pela manhã, na casa real deu-se pela falta do homem franzino. O rei acordava cedo, quando estava cheio de compromissos logo pela manhã. Nesse dia atrasou-se. Foi um ultraje vergonhoso para figura suprema.

Na fatídica manhã, ao chegar à  mesa, não estava lá o seu queijo predileto e o café não estava batido à  medida do seu paladar. Isso sem contar que, depois percebeu que vestira os trajes errados.

A algazarra estava instalada. Os empregados desorientados. Na cozinha, era desconhecido o cardápio. Na sala de refeições, havia uma confusão na disposição dos talheres. A equipa protocolar estava desnorteada. Os poucos visitantes ficaram horas à fio a espera do rei. Foi um autêntico vexame. No palácio, apenas andava-se de um lado para o outro, sem, no entanto, um destino final. Todos tontos.

Notando a confusão que se havia instalado no palácio, a rainha desceu do seu pedestal para perceber a razão. Foi quando soube que tudo se devia a ausência do homem franzino.

Ignorando os seus princípios de não se misturar com a plebe, que era a casta do mordomo, foi até ao casebre do ecónomo, nos fundos do palácio.

Ao chegar, encontrou-o debilitado, cuspindo sangue e vomitando ininterruptamente ao mesmo ritmo que defecava, sem suportar mover, se quer, o dedo mindinho. Estava nas últimas, por um fio, ao que parecia.

A rainha, desesperada, voltou ao palácio para chamar aos esculápios e curandeiros reais. Entretanto, a sua educação cristã, apelava que chamasse um sacerdote, para lhe conceder a santa unção.

Na volta ao casebre, as patas do cavalo submergiam. Os prantos da família, pausados por impercetíveis curtos soluços, não lhes permitia emitir qualquer verbo.

Assim que o rei tomou conhecimento da situação, decretou luto em todo o seu reino, ordenou aos sacerdotes a dedicarem ao homem franzino todas as suas orações. Promulgou à paralisação de todas as actividades no reino, fossem de caris económico, medicinal ou qualquer outra ocupação laboral. Era para parar tudo, inclusive o garimpo – fonte de maior rendimento do rei e do reino.

Os artistas plásticos tinham ordem expressa de lhe dedicar uma pintura. A promessa da realeza era que o melhor seria levado para pousar no salão nobre da família real, e os demais seriam distribuídos pelo reino, onde ficariam expostos por período indeterminado.

Aos poetas e músicos cabia compor canções e poemas líricos, não fúnebres, pois o rei queria apenas celebrar a vida do seu mordomo.

Entoando trompetes e trombones, a guarda real galopava, lentamente, enquanto conduzia o rei para casa do homem franzino. Chegado lá, ao descer da liteira, conforme o protocolo da realeza, proferiu o discurso fúnebre, que na verdade, celebrava a vida do homem.

Rasgados elogios, atribuição de honrarias, como o título de duque, em reconhecimento da sua prestação. O rei, com o coração encharcado pela dor da perda, finalmente, percebera o quão importante era aquele homem.

De repente, fez-se silêncio, quando, sob rastos ainda, o franzino saiu, com um sorriso no rosto, pela porta.

*O meu tributo ao Velho Shona que vai a reforma. Abraços sinceros de quem vai sentir saudades apesar de pouco tempo de convivência no “Notícias”.
 

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