ESCRITOR M.P BONDE “Nunca me preocupo com o leitor”

Por Elton Pila

“A Descrição das Sombras” é o segundo livro de M. P Bonde. Sai do prelo, nove meses depois da sua obra de estreia. Levante-se o poeta. Este ano já vai ao fim. Mas terá marcado a vida de Macvildo Pedro Bonde (n. 1980), pelo menos, enquanto escritor. Volvidos 17 anos de activismo cultural e literário, estreou-se em livro próprio com “Ensaios Poéticos” (Cavalo do Mar, 2017), uma obra de poesia em prosa marcada pelo tédio que lhe causava – e causa – o estado das coisas social, cultural, até politicamente, no país.

O título sugeria o esboço de uma poesia por vir. “A Descrição das Sombras” (Fundação Fernando Leite Couto, 2017) quer dar certezas do caminho que o escritor quer trilhar. E o Prémio Fernando Leite Couto que se lhe foi atribuído soa como palmadas às costas. Segundo o poeta, a distinção, entre 142 candidaturas finalistas, é um incentivo a uma geração que acreditou que a “boa escrita” – aspas do autor – pode ser compensada. “Como está a poesia, hoje?” é a questão que se impõe logo no primeiro texto do livro. E todo o exercício poético de Bonde parece querer respondê-la. Parece querer dizer que a poesia está de boa saúde e no que depender dele não vai perecer. Tem, em manga, oito projectos de livro já terminados. Quem é amigo do poeta no facebook já deve ter a ideia do que há-de ser “Gaiola do Medo”, talvez o próximo a sair do prelo. Mas voltemos à estrela da vez, “A Descrição das Sombras”. Duas referências colocam o leitor a par do processo criativo do escritor. A data que mostra que o livro foi escrito em pouco menos de um mês. E as horas que indicam que, apesar de a noite e a madrugada serem referências constantes, o grosso dos textos foi materializado à luz do dia. É este o fio que começa a tecer a entrevista.

O poeta, a noite e a poesia

Ao fim de cada poema colocou a hora e a data em que o poema foi escrito. Qual era a pertinência destes detalhes?

M.P Bonde – Era uma provocação. Mas também um desafio. Porque podemos pensar que os textos escritos num dado momento e numa certa hora são díspares, mas no fundo há um cruzamento, há uma união. Também queria perceber até que ponto podia me afastar ou estar dentro de uma lógica na descrição das sombras.

A ideia de noite e madrugada são referências constantes. Qual é o encanto que têm estes períodos para um exercício poético?

M.P Bonde – Talvez a insónia. A insónia pode ser um elemento que me leva ao papel. Não para matar a solidão, porque a esta hora estou no aconchego de alguém. No entanto, o papel serve para conversar comigo mesmo. Quando não tenho uma pessoa que me possa compreender, talvez o papel seja o meu melhor amigo. Então, a noite, a madrugada, o som da madrugada ajuda no processo criativo. Talvez sejam textos que em termos de ideias já haviam sido concebidos. Mas a noite pode servir para cortar até chegar à essência do que se pretende.

É a noite que traz os textos, mas é à luz do dia que são materializados. Só tem, no livro, dois textos escritos de noite. Como é isto de os textos aparecerem de noite, mas passá-los para o papel de manhã ou de tarde?

M.P Bonde – Talvez porque é a hora que me é possível. Sou funcionário público. A minha actividade não se cinge apenas à escrita. Neste momento, não estou em condições de fazer um programa para escrever. Todos os momentos que dão possibilidade de passar as minhas ideias para o papel, uso-os com afinco. É chato, por vezes, estou num encontro e tenho de passar as ideias para um papel, se não as perco. Escrevo a esta hora também, porque permite maior investigação. Se há alguma dúvida, é fácil entrar na internet e ver um material que pode auxiliar nesse sentido.

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Capa do livro vencedor do primeiro Prémio Fernando Leite Couto

Esta distância da noite para o dia traz algum ganho ou perda para o texto final?

Traz ganhos, na medida que vejo os textos com outros olhos. No primeiro instante, podemos achar um grande texto, mas passadas algumas horas, percebemos que a ideia é boa, mas não deu em nada. O distanciamento é sempre importante para voltarmos com um outro olhar, com uma outra bagagem ao texto que fizemos. Dizia-se que Craveirinha escrevia o mesmo texto oito vezes, ainda não cheguei a este estágio. Escrever o mesmo texto várias vezes, para mim, é escrever outros textos. As palavras chegam como se escolhessem o momento. Não é uma questão de ir procurar, elas chegam por si só. Isto de algum modo facilita. Esta é a felicidade que tenho.

Da relação com os (seus) leitores

Enquanto no primeiro livro, o tédio perpassava quase todos os poemas. Neste último, a ideia do medo é que é constante. Medo de quê?

M.P Bonde – O medo pode ser tédio numa outra dimensão. Este aborrecimento que as coisas causam por não andarem como queremos ou porque deixamos que as coisas boas fiquem de lado e vamos apadrinhando certas coisas porque ficam bem.

O leitor só vai conseguir chegar à esta interpretação se conseguir desconstruir as metáforas…

M.P Bonde – Sim. A poesia não é jornalismo. A poesia tem mais de 2000 anos de existência. É maior do que a prosa, no sentido de contos e romances escritos. A discussão das metáforas é antiga. Os artistas descrevem a sua realidade, o seu interior, mas quem lê precisa ter um conjunto de ferramentas para decifrar.

 Sente que os teus leitores têm essas ferramentas?

M.P Bonde – Isto implica um trabalho anterior. Mas não sou um poeta tão hermético. Que as pessoas não tenham códigos. Se não me conseguem ler, enquanto Bonde, como é que lerão um [Luís Carlos] Patraquim, um Paul Celan, que têm outros arquétipos.

Enquanto escreve, está consciente do leitor que quer alcançar?

M.P Bonde – Nunca me preocupo com o leitor. Preocupo-me apenas com o texto que estou a escrever. Escrevo um texto para que alguém que esteja em Bagdad ou em Bogotá tenha a mesma emoção de alguém que está a passear pelas ruas do Alto-Maé.

CAPA DO LIVRO-2
Primeiro livro de Bonde

Dá-nos, agora, um título com um condão poético grande, diferente do primeiro livro. Então, onde foi tirar este título?

M.P Bonde – [António] Gamoneda escreveu “Descrição da Mentira”. Quando entreguei o livro à Fundação [Fernando Leite Couto] era “A Descrição das Sombras e do Silêncio”. Conversando com colegas como Léo Cote ou o próprio editor Celso Muianga, acabei cortando o silêncio. A ideia do silêncio pode estar dentro das sombras. Se vires no livro, a ideia do silêncio é muito presente. A obra podia ser “A Descrição do Silêncio”, também caia bem. Mas ficamos com as sombras. Depois, no processo de edição, quando a “Fundação” falou com o Djive e deram a proposta da imagem que faz a capa, O Monstro das Cavernas, fez mais sentido. A caverna também tem esta ideia de sombra, de silêncio, de medo, de escuridão. 

Prémio Fundação Couto:

compensação pela crença

Nota-se, neste livro, como no primeiro, que busca uma palavra entre o texto e coloca-a como título. Ainda com a mesma dificuldade de dar títulos ou já é uma marca do Bonde?

M.P Bonde – Se dissesse que é uma marca estaria a mentir para mim mesmo. É-me sempre difícil dar títulos. Porque o leitor felizmente ou infelizmente pode ir do título para o texto. Para mim é muito mais fácil, neste momento, ir ao texto e buscar uma palavra e intitular o texto.

Pela data dos poemas, podemos pensar que escreveu o livro propriamente para o Prémio da Fundação. Foi isto?

M.P Bonde – Também.

Também?

– Sim. Disse, noutro dia, que queria testar como é vista a prosa poética num concurso literário. O grau de aceitação da prosa poética não é tanto assim. Talvez tive a sorte de ter um júri que, não era só do nosso meio e que tem outra percepção do que possa ser poesia. Talvez, isso pode não ser verdade. É muito difícil encontrar alguém que tenha ganho algum prémio com prosa poética. Queria testar a minha qualidade.

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M.P BONDE

Disse, pouco depois de ter sido distinguido, que o prémio serve para exorcizar alguns fantasmas, alguns demónios. Quais fantasmas? Quais demónios?

M.P Bonde – Só para recordar, tirei o meu primeiro livro em 2017. Mas estou há muitos anos neste movimento, que algumas pessoas não sabiam que eu não tinha livro. Ter um livro no início do ano e fechar o ano com outro livro é responder àquela inquietação do Adolfo Saphala, que dizia, se nós não fizermos a nossa parte, não devemos culpar os outros por aquilo que não fizemos. A única coisa que devo fazer é escrever. É um pouco deste passado, das cartas trocadas com o Saphala, sobre o estágio da nossa literatura em 2006. A nossa preocupação não era lançar livro, mas escrever, porque o lançamento tinha de ser consequência destes escritos. E, hoje, estou a ver os frutos, o prémio é incentivo a uma geração que acreditou que a escrita, que a “boa escrita”, pode ser compensada. Foi-me atribuído, enquanto Bonde. Mas pertence a um projecto que é o Arrabenta Xithokozelo.

Já no “Ensaios Poéticos” escreveu “tenho de parar com esta coisa de tentar ser maior e diferente dos outros”. Neste livro, volta a tentar afastar-se da grande maioria dos escritores que lhe causavam aquele tédio que inspirou grande parte dos ensaios poéticos?

M.P Bonde – A minha procura, agora, não é saber sobre aquilo que está a acontecer ou como está a nossa produção literária. Mas é seguir os meus heróis. Quando comecei a folhear Paul Celan, comecei a perceber que a poesia é outra coisa. Como ele disse, só mãos verdadeiras escrevem textos verdadeiros. Ao Celan nem toda gente percebeu, porque implica um conhecimento profundo. É como Patraquim, talvez por isso não tenha escola. É muito mais fácil encontrar pessoas que seguem Craveirinha, Noémia de Sousa e um pouco do White.

“Para quando um poema vertical?”, impôs-se esta questão, no primeiro livro. O caminho ainda é longo?

M.P Bonde – Sim. É longo, porque o texto nunca termina. É como uma mulher, no dia em que as conhecermos perfeitamente, o encanto desaparece. Quando achamos que entendemos, dia seguinte aparece de outra coisa. A poesia é isto. O importante não é o destino, mas a viagem. Talvez por isso goste, quando vou ler os autores, de não ler apenas o texto, mas toda a aura que levou a compor o texto.

AG8W2591.JPGQuem o ouve a dizer isso, quem o ouviu na mesa-literária, quando falava da “Procura da Palavra Certa”, trouxe muito esta referência da vida boémia como algo que dá elementos para compor a poesia. Mas quem olha o Bonde, talvez não o consiga enquadrar na esteira desta boémia.

M.P Bonde – A realidade dos séculos XVIII, XIX, XX e do século XXI são muito diferentes. Hoje, estamos construídos de certos moldes, certos cânones, que talvez a boémia já não sirva nos moldes anteriores. Já não temos poetas malditos. Talvez porque a maldição não pode ser vista apenas pela ida ao bar e ficar lá até às tantas. Nós continuamos a fazer isto. Mas como dizia Hemingway, ele ia ao bar, mas depois se fechava de pé no seu quarto a escrever. Uma coisa é isolamento, outra coisa é solidão. Às vezes, sair para estes lugares, ouvir conversas banais, é bom para desanuviar, buscar novas energias para continuar este processo criativo. A boémia não é um meio para escrever. Mas talvez, como diz Freud, seja uma válvula de escape.

 

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