Natal

O fim do dia é-me,  habitualmente, melancólico. Depois  do  sol se pôr, mas antes da lua se impor,  quando o céu está amarelecido, quando só os ponteiros do relógio indicam se é tarde ou noite, a melancolia invade-me. Evade-se, só na escuridão trazida pela noite.  Mas hoje, no dia que escrevo esta crónica, é  natal, é fim do dia, talvez pela proximidade da família (estão quase todos aqui), a melancolia deu-me folga. Volta, amanhã, sinto.

Acabo de terminar a leitura do romance “As Visitas de Dr. Valdez” (2004) de João Paulo Borges Coelho (n. 1955). Fiz a leitura do livro, depois de ter assistido à adaptação teatral do mesmo. Foi uma experiência encantadora que permitiu o prazer de ouvir as vozes dos personagens, pelo menos as principais, embora a peça não tenha sido uma reprodução fiel da obra.

 

Estou com o livro fechado em mãos. Penso na ilusão, nas máscaras que o livro evoca e convoca, quando um dos meus sobrinhos, na inquietude dos dois anos, de brinquedo feito telemóvel, para o nosso espanto,  grita “aló’s”, e espera,  pacientemente, com brilho no olhar, sorriso nos lábios, pela resposta do outro lado da falsa linha. A resposta deve ter-lhe chegado, porque ele pergunta “tudo bem?” e logo diz “estou bem” para chegar ao que parece ter sido o mote da ligação “Vai tlazel (trocando o R pelo L) bolo”.  Prontamente, minha irmã, que afinal também o ouvia, leva-lhe o bolo. Este diálogo cheio de códigos  distantes, mas sempre presentes, entre mãe e filho.

 

Vejo isso, lembro-me de Vicente, o criado que se faz, numa imitação espalhafatosa, Dr. Valdez, mas que a pessoa à  quem encena, Sá Amélia, acredita ou  finge acreditar, talvez pela alegria que isso dá.

 

É Natal, mais uns dias novo ano. Tempo para fingimentos, ainda que mascarado pela ideia de renovação. Recebo mensagens de “amigos” distantes, já nem lhes tenho os números gravados no telemóvel, nem lhes tenho o rosto na memória, mas desejam um Feliz Natal. Sorrio, desejo de volta, imagino que também sorriem. Nesta vida, todos somos um pouco Vicente  fazendo-se Dr. Valdez, temos também todos um pouco desta necessidade de nos deixarmos enganar em nome da alegria que o engano proporciona.


eLTON pILA2

Sonha em mudar o mundo. Acredita no jornalismo e na literatura como agentes desta mudança. Colabora em alguns jornais, revistas e festivais de literatura. Actualmente, é redactor da Revista Literatas e tem a coluna semanal Como Sopra o Vento
[email protected]

Leave a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Scroll to Top