TP50 Quando os amigos se cruzam é festa

 

FOTOS DE ISAÍAS SITÓE

FORMALMENTE TP50 existe há 10 anos, mas começou nos anos oitenta. Em abono da verdade, é preciso assumir que este projecto nada mais é que um encontro de amigos que, guiados pela crença de, através dos seus laços, edificar um mundo melhor, um Moçambique diferente, buscam fazê-lo com recurso às artes.

Foi o longo percurso desses anos de existência que preencheu as quatro horas de espectáculo, realizado há dias no Centro Cultural Franco-Moçambicano. Era sexta-feira, o dia marcado para o concerto Saravah, em celebração dos seus 10 anos. O dia tinha sido fresco.

Ao entrar para o “Franco”, ainda na galeria, contemplava-se a exposição que narra os seus vários anos de caminhada.

Registos inéditos para o público de momentos de encontros cujo interesse apenas era partilhar guitarradas com amigos, num ambiente lubrificado por alguns copos e animados por cantorias. Eram tempos difíceis, o país estava em guerra, entretanto eles ainda inventavam razões para sorrir.

A mostra é composta por vídeos, textos e fotos. Este último item tem a peculiaridade de tratar-se de fotografias feitas numa altura em que, de facto, os registos fotográficos serviam exactamente para eternizar eventos simbólicos, o que as preenche de significado. A foto hoje é feita a questionar-se como aparecerá no Facebook. Os vídeos e a documentação em papel, por outro lado, esclarecem que se está diante de um grupo que se propala amador, entretanto exibe elevado nível de organização.

Depois de apitar o sino que sinaliza a abertura dos portões da sala grande é que se notou que a afluência tinha sido enorme. Os bancos estavam preenchidos quase que na totalidade.

Já a Velha, personagem que desempenha, em algum momento, um papel contextualizador, tinha anunciado que o espectáculo iniciara quando rodou um filme de Vinícius de Morais.

Xixel Langa emergiu dos bastidores para interpretar “Canto Hossana/Dia da Criação”, numa evocação espiritual, como é apanágio, no início de qualquer actividade familiar. Depois veio a Nadya. A seguir, o Mano. E a música evoluiu.

A era da “Bossa Nova”

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Plateia atenta

 

O esposo da Velha, no caso, o Velho, enquanto descia as escadas junto à plateia, em direção ao palco, perguntava pela parceira. Tratando-se de um concerto temático, concebido de tal forma que se pareça com um documentário, esta intervenção era um pretexto para se introduzir o capítulo da “Bossa Nova”.

“Falando de amor”, de Vinícius de Morais, foi então apropriada pela versátil Xixel Langa, que até estava mais comportada e menos elétrica que o habitual. A meio da performance, a banda, que ocupava toda a região recuada do palco, baixou para que Delissa dissesse um poema, o seu sotaque brasileiro dava um toque que facilmente transportava para o espirito desse samba casado com o jazz norte-americano – no fundo é também música de fundo de quintal elevado a outros patamares.

Ao longo dos seus 10 anos formais foram sucesso de bilheteira. Levaram a sua música para os mais badalados e, é preciso assumir, mais elitizados – ainda que a realidade não seja tão bem assim. Não se tratando, obviamente, de nenhuma obrigação, apraz-nos cogitar a possibilidade de assistir a um espetáculo assim tão elaborado no detalhe, de TP50, no meio do bairro da Mafalala, Chamanculo, Maxaquene, Zimpeto e por quê não Patrice Lumunba ou Liberdade?

No concerto, a história de TP50 com fotografias e algumas películas que iam sendo projectadas no fundo do palco.

Ainda na “Bossa Nova”, que foi o que nos primeiros anos formais, de 2007 a 2011, mais tocaram, Maria João, a convidada portuguesa, trouxe ao “movie” “São 2 pra lá 2 pra cá”, de Elis Regina.

Ainda que, provavelmente, sem pretensão nenhuma de se parecer com a original, a intérprete era próxima da Elis, pois se assemelham no que mais destacou a brasileira, que é justamente a sua competência vocal, musicalidade e a presença em palco.

Num flashback, o espetáculo volta no tempo, para os anos 80, onde no centro do palco estavam posicionados António Prista, Hortêncio Langa, ambos, sentados, com violão ao colo, e Joel Libombo (antigo ministro) no meio para interpretar, como nos velhos tempos, “Gente humilde”, de Chico Buarque.

Xixel Langa voltou ao palco com uma voz que, de longe, remetia ao charme da aparente permanente embriaguez da lendária Billy Holiday. Interpretava “Canto das 3 raças”, tornada célebre pela brasileira Clara Nunes. Neste ponto já se voltava ao solo pátrio, pois fez parte do repertório de tributo ao escritor Calane da Silva.

Contar cantando

a nossa história

TP50 2.JPGChegados aqui torna-se pertinente reconhecer os méritos de TP50 até ao momento. A iniciativa introduziu no cenário de espetáculos musicais a necessidade de se elaborar um conceito temático para levar ao palco e segui-lo à risca. Muito mais do que música, estes concertos sempre foram a coabitação de diversas disciplinas artísticas, que passam pelo teatro, cinema, poesia…

Apropriando-se dessa habilidade, nos tributos que na segunda fase do projecto, depois de muita bossa nova e mpb, os quais homenagearam Calane da Silva, Hortêncio Langa, Mia Couto e Titio Turtão.

Nessas ocasiões a curadoria mergulhou nas obras destas figuras para em função dos seus trabalhos, contextualizar e contar a história de Moçambique. Na verdade, neste sentido, as homenagens surgem como bode expiatório para algo maior. Por outro lado, não deixa de constituir uma nobre lição que dá, não só ao sector artístico e cultural, mas ao país como um todo das diversas alternativas possíveis no processo de educação.

Outro beneplácito é o facto de numa só banda – sabe-se lá se esta seria a designação correcta – conviverem várias e gerações, possibilitando dessa forma uma transmissão de valores e legados por parte dos mais velhos e a actualização dos jovens.

É neste contexto que Ónesia Muholove, uma voz que, gradualmente, se impondo, perspectivando um futuro promissor, se coloca a cantar “Maria Socorro”. Eram as Marias, banda feminina da Escola de Comunicação e Artes da Universidade Eduardo Mondlane. A mesma é coordenada pelo saxofonista Timóteo Cuche.

Sob ponto de vista estético era um samba que a meio do percurso foi invadido de súbito por um xigubo vibrante, ao que nos foi explicado instantes depois que tratava-se de “Marrasamba” um questionamento ao belo que se pretende ponte entre Moçambique e Brasil.

Os 35 concertos realizados ao longo dos anos estavam a ser resumidos naquele espectáculo. A banda durante as 4 horas jamais desceu do nível.

Noite a dentro, foram os temas que constam do disco “Saravah 10 anos com TP50”, para além de uma pausa para homenagear o Titio Turutão, que mereceu tributo em forma de disco.

*Publicado no Jornal Notícias de 20/09/17

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