Refeição farta

Por Elton Pila

Depois de uma manhã de sol intenso, nuvens negras instituem a noite mais cedo. Suplantam o claro azul do céu, auguram uma tempestade. Ventos frios já sopram, lá fora. Mas, dentro de casa, o calor continua intenso.

Aguardo a chuva, quando da viga que suporta o tecto, surge um pequeno lagarto. Um lagarto doméstico com a pele meio transparente. Caminha como se rastejasse em direcção à luz. Busca por pequenos insectos. A língua começa a negar as grades da boca.

No entanto, interrompe os passos, quando uma barata (este quarto precisa de uma dedetização) pouco maior do que ela sobressai do outro lado da viga. A barata não nota o algoz, caminha serena e impávida. O pequeno lagarto, discretamente, avança. Sopra uma leve brisa, a barata nota a morte, mas já é tarde, a lagartixa estende a língua, depois o corpo e já tem metade do insecto na boca.

A barata debate-se, tenta escapar. Posso sentir-lhe a agonia. Tenho compaixão. Podia ser Gregor, A Metamorfose, Franz Kafka. Mas já nada posso fazer.

A lagartixa tem, agora, toda a barata dentro dela, posso vê-la. Esticada a pele torna-se mais transparente. O insecto reconfigura o pequeno réptil que farto não se consegue segurar à viga, despenca. Não mais se move. Aproximo-me. Mas o gato, que só agora o noto, já o tem na boca.

eLTON pILA2

Sonha em mudar o mundo. Acredita no jornalismo e na literatura como agentes desta mudança. Colabora em alguns jornais, revistas e festivais de literatura. Actualmente, é redactor da Revista Literatas e tem a coluna semanal Como Sopra o Vento

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