HUGH MASEKELA: O africano tem vergonha das suas raízes

 

AS línguas e parte dos hábitos culturais que Hugh Masekela cresceu a ver e ouvir, em Witbank, na África do Sul, estão a perder-se. E os herdeiros as desconhecem.

Acometido pela preocupação de ver a sua cultura marginalizada, caminhando para a extinção, o trompetista decidiu criar a Hugh Masekela Heritage Foundation, uma instituição a que empresta o seu nome e está vocacionada a passar o testemunho dos usos e costumes africanos. Afinal, disso depende a perenidade da África do Sul e, quiçá, do continente africano.

Masekela contou, num encontro havido há dias na capital do país, que quando nasceu, em 1939, as famílias da sua região prezavam o conhecimento da sua cultura.

Na altura, os negros eram proprietários de terras na África do Sul e tinham na agricultura a sua base de subsistência. É nesse contexto que o trompetista cresceu a cuidar da terra, de animais domésticos… enfim, da natureza.

Organizado por iniciativa do saxofonista moçambicano Moreira Chonguiça, o Master Class Jazz, intitulado “The Man Behind The artist” (O Homem atrás do artista), tinha como objectivo mostrar às novas gerações o valor da cultura tradicional africana.

Uma das maiores lendas da música africana e do afro-jazz, Hugh Masekela, cujo peso da idade (78 anos) já se faz sentir, contou que, em alguns finais de semana, de visita à terra dos seus avós, deliciava-se com as histórias que lhe eram contadas sobre as suas origens. Era sempre assim: no final do dia, o avô Masekela sempre fazia questão de perguntar ao neto Hugh se ele sabia quem era, ao que devia responder com a poesia que descreve e exalta a epopeia das origens da sua família desde os primórdios até aos dias que corriam. Tudo narrado na sua língua nativa.

HUGH MASEKELA-3Na verdade, era uma espécie de recapitulação do que os avôs tinham contado antes, tudo somente para ter certeza que o legado estava a ser transmitido. “Eu só comecei a ter o primeiro contacto com a língua inglesa quando entrei para a escola”, recordou Hugh Masekela. E isso aconteceu porque, no seu seio, fez-se sempre questão de preservar as suas raízes.

Pelo facto de ter nascido numa zona mineira, Masekela teve a oportunidade de conhecer diversas culturas, não só sul-africanas. Até porque, recorda, a maioria dos mineiros daquela zona eram provenientes de Moçambique, sendo alguns das etnias Changana e Chopi.

As festas de casamentos eram oportunas, pois nessas cerimónias transbordavam as características de cada povo, isto para o encanto das crianças locais, que tinham ali as suas diversões sem, no entanto, ter consciência da riqueza de conhecimentos que adquiriam.

“Identificávamos os grupos étnicos pelas bandeiras que hasteavam”, explicou, antes de gracejar que “foi ali que surgiram as primeiras namoradas”.

Visivelmente debilitado, de tal forma que durante as duas horas do Master Class em momento algum ficou de pé, mas mesmo sentado na poltrona Hugh Masekela ainda exibiu o vigor da sua voz e uma sabedoria própria de anciãos, mas também de quem viveu profundamente a vida.

O artista assumiu que depois de ter estado 30 anos no exílio, fugindo a um sistema racista, o “apartheid”, que governava a África do Sul, chocou-se quando voltou para casa e percebeu que os valores de base tradicional iam se perdendo.

Por exemplo, um dos episódios que o marcou foi o sotaque “muito britânico” do Inglês de uma das suas sobrinhas ao cumprimentar-lhe.

De modo a contribuir para que a identidade da cultura africana não se perca nas próximas três décadas, criou a Hugh Masekela Heritage Foundation, que vai construir centros nos quais serão leccionadas “as línguas e a cultura africanas”.

Um problema que começa em casa

Ciente do facto da sua sobrinha com sotaque de Inglês “muito britânico” não se tratar de um caso isolado, o trompetista observa que este é um problema que não se verifica apenas na África do Sul, mas também Moçambique e tantos outros países africanos constam do pacote. E isto deriva do facto de os países africanos terem adoptado a língua do colonizador para uso oficial.

Hugh Masekela anota que este “assassinato” da cultura tem na família o seu berço a partir do momento em que dão primazia às línguas europeias no diálogo quotidiano e na educação dos seus filhos.

A título de exemplo, contou que certo dia perguntou a um amigo porque é que a sua esposa havia montado cabelos importados, ao que, como resposta, ouviu: “A minha mulher não pode se parecer com aquelas do mato”.

Neste sentido, apontou que caso não se tome a devida atenção em pouco tempo a cultura africana estará extinta, pois as pessoas têm vergonha até da sua imagem, de se parecer com eles mesmos, com o que realmente são. Têm vergonha das suas origens.

“Temos que recuperar a nossa cultura, aprender com os mais velhos”, disse num apelo quase desesperado.

Hugh Masekela questionou as razões que levam muitos africanos, incluindo os ‘destacados académicos’, a apreciar o tradicional europeu, como um Bethoveen ou um Bach ou ainda um Chopin, quando em África também há música baseada no folclore.

Por isso, confessou, o seu sonho é um dia saber da existência de uma academia de estudos de arte e da cultura africana, que, acredita, contribuiria significativamente para mudar o rumo dos acontecimentos porque a educação é o alicerce de tudo.

“Era bom que houvesse museus e espaços culturais exibindo o que é africano, para que fizesse conhecer. É preciso envolver as pessoas nativas e os anciãos no processo de educação, é necessário realizar festivais regulares sobre a cultura africana se não perderemos a batalha” invocou.HUGH MASEKELA-1.jpg

Indicou, por outro lado, que este pode ser o caminho para se evitar casos de xenofobia, que muito se assistem na África do Sul, por exemplo, pois com educação as pessoas saberão que as fronteiras dos seus países, tanto respeitam hoje, não têm mais de 300 anos. E as mesmas resultaram do processo de colonização, numa espécie de dividir para as potências colonizadoras melhor reinarem.

“Os museus, o conhecimento da história tradicional africana, e a educação baseada nos usos e costumes africanos irão ajudar-nos a preservar a nossa identidade, para além de garantirem que se evite choques entre povos irmãos”, anotou, realçando o interesse de ver o seu projecto também implementado em Moçambique.

*Publicado no Jornal Notícias na edição de 23/08/17

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