ALFARRABISTAS

É madrugada. Lanço o olhar às dezenas de livros enfileirados na estante. Penso nos alfarrabistas. Não fosse por eles, talvez me restasse, apenas, meia dúzia de títulos. Enquanto as livrarias praticam preços que me limitam as montras, são os alfarrabistas que me permitem levar às obras.
Talvez por isso, penso neles (nos alfarrabistas) como uma versão literária de Robin Hood. Alguns daqueles livros chegam-nos em prejuízo das livrarias. Algumas obras conservam, ainda, os exorbitantes preços. “Veja, quanto custa está obra, na livraria” já, muitas vezes, atiraram-me à cara esta frase, querendo provar-me o quão irrisório é o novo preço.
João Paulo Borges Coelho (n. 1955), na crónica que leva o nome de prólogo do seu romance Rainhas da Noite (Caminho, 2013), narra esta experiência de comprar livros aos alfarrabistas, na Avenida Kim Il Sung, marcada por idas, vindas e desdém para apoucar (créditos ao autor) o preço do livro A Ilha de Próspero de Rui Knopfli.
“Confesso que cheguei a enveredar por caminhos tortuosos, afirmando que o preço que ele pedia seria adequado se as fotos fossem coloridas e ali se contasse uma história com pés e cabeça, o que manifestamente não era o caso”. Não tendo esta estratégia dado certo, o autor conta, volvidos alguns parágrafos “(…) recorri ao estratagema clássico de me despedir, simulando interesse nos livros de vendedores vizinhos (…)”
(Quantas vezes valho-me destas estratégias. Não é à isto que os críticos literários chamam verosimilhança?)
No entanto, tendo todas as estratégias redundado em fracasso, o autor volta ao alfarrabista e paga o preço estipulado. À custa do troco que merecia (por direito), o alfarrabista propõe ao autor um diário manuscrito de “uma tal Maria Eugenia Murilo”. É este caderno o mote do romance Rainhas da Noite. O título faz alusão às plantas predominantes no espaço geográfico que grande parte da narrativa se insere, não alude à profissão mais antiga do mundo (lamento, se o decepciono, caro leitor).
Fui tentando, pela leitura da obra, a andar de alfarrabista em alfarrabista, ao longo da Kim Il Sung, com a foto de João Paulo Borges Coelho em riste, perguntando-os: se o autor havia por lá passado, se algum deles o teria vendido o referido diário. Mas cedi. Deixei-me pensar na verdade do prólogo e do livro. Afinal, o que seria da literatura, se não a vivêssemos como uma verdade religiosa?
Enfim, resta-me, continuar, a adquirir os livros dos alfarrabistas, na esperança de que, um dia, receba, um diário que me vai fazer dar um salto destas pequenas prosas até um grande romance.
 

eLTON pILA2

Sonha em mudar o mundo. Acredita no jornalismo e na literatura como agentes desta mudança. Colabora em alguns jornais, revistas e festivais de literatura. Actualmente, é redactor da Revista Literatas e tem a coluna semanal Como Sopra o Vento
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